Quem conhece a obra "A Cidade e as Serras" de Eça de Queiroz, conhece a Casa de Tormes. Na realidade, o local chama-se Quinta da Vila Nova - embora seja mais conhecido pelo nome literário - e abriga, desde 1990, a Fundação Eça de Queiroz, reunindo grande parte do espólio pessoal do autor, além de alguns objetos citados na sua obra, como a cadeira de Jacinto ou a mesa, onde comeu o famoso arroz de favas.
Eça nunca viveu na casa, que conheceu de forma muito diferente do que é agora. Quando a sua esposa Emília de Castro a herdou por falecimento dos pais, os condes de Resende, o escritor saiu de Paris onde era cônsul e rumou a Santa Cruz do Douro para conhecer a propriedade. Chegado à estação de Aregos, Eça subiu a serra a cavalo e deixou-se encantar pela sua beleza, de tal forma que acabou por escrever um dos seus romances mais emblemáticos.
"O caminho íngreme e alpestre da estação até à quinta é simplesmente maravilhoso. Vales lindíssimos, carvalheiras e soutos de castanheiros seculares, quedas de água, pomares, flores, tudo há naquele bendito monte."
Quando Eça chegou à casa, o encanto passou e o escritor, habituado a uma vida requintada em Paris, deparou-se com um espaço habitado por animais. Eça odiou a casa, que considerou "excelente para guardar milho - impossível de conter uma família". Na carta que escreveu à esposa, Eça de Queiroz exprimiu toda a sua desilusão com o que viu.
“Enquanto a casa é feia, muito feia; e à fachada mesmo pode-se aplicar, sem injustiça, a designação de hedionda. Tem um arco enorme; e por baixo dele, duas escadas paralelas, que são de um mau gosto incomparável"
A casa encontrava-se habitada por animais, guardava milho e era praticamente inabitável, tal como descrito na obra. "Os caseiros que lá vivem há 30 anos dormem em catres, comem o caldo à lareira, usam as salas para secar o milho e os únicos móveis sobreviventes são um armário e uma espineta de charão coxa e já sem teclas".
Eça nunca viveu na Casa de Tormes, tendo-a visitado quatro vezes, antes de falecer a 16 de agosto de 1900, em França. Após a sua morte, a sua esposa voltou para Portugal com os filhos. Foi a filha mais velha, Maria Eça de Queiroz de Castro, que se mudou para casa e a foi enchendo de recordações do escritor, desde objectos pessoais a móveis e outras coisas ligadas à actividade de criação, como a secretária onde escrevia de pé ou o armário onde guardava as suas obras. Mais tarde seria o neto do escritor e sua esposa, Maria da Graça Salema de Castro, a dar continuidade ao sonho de criar a Fundação Eça de Queiroz, que nasceu em 1990.
Na primeira sala visitada encontramos os três únicos objetos que estavam na casa originalmente, ainda antes de Eça a visitar pela primeira vez. Podemos ver o arcaz de sacristia, onde se guardavam os pagamentos do padre; aquela que ficou conhecida como “cadeira de Jacinto”, a única cadeira que Eça tinha disponível na propriedade e a mesa onde Eça comeu o famoso arroz de favas.
Na casa é possível também ver grande parte dos pertences de Eça, como os móveis da casa em Neully, aonde faleceu, a escrivaninha feita por medida e onde escrevia de pé, parte da sua biblioteca, presentes recebidos, condecorações, o seu quarto, sala de jantar, as suas fotografias, os quadros oferecidos pelo rei D. Carlos e até parte do seu cabelo que a esposa guardou como recordação. Grande parte dos seus pertences viajaram de Paris até Santa Cruz do Douro, para transformar a Casa de Tormes num museu onde o escritor em tudo é lembrado.
Além dos objetos de Eça, encontramos vários objetos mais recentes, uma vez que a casa foi habitada pelos seus descendentes, até 2015, quando faleceu Maria da Graça Salema de Castro, presidente e fundadora da Fundação Eça de Queiroz, e esposa de um dos seus netos.
"Deste arroz com fava, nem em Paris"
Quando Eça decidiu sair de Paris em direção a Santa Cruz do Douro, enviou uma carta aos caseiros indicando os cuidados que deveriam tomar para a sua chegada e estadia. No entanto, a carta perde-se e quando Eça chega à casa nada estava preparado. Os caseiros acabam por preparar a Eça um simples arroz de favas, apanham um dos frangos que tinham a perambular pela propriedade e fritam-no. Eça, que odiava favas e estava acostumado à fina gastronomia parisiense, fica deliciado com aquele prato.
"Jacinto, em Paris, sempre abominara favas! … Tentou todavia uma garfada tímida – e de novo aqueles seus olhos, que pessimismo enevoara, luziram, procurando os meus. Outra larga garfada, concentrada, com uma lentidão de frade que se regala. Depois um brado: – Óptimo!… Ah, destas favas, sim! Oh que fava! Que delícia!"
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