Nessa tarde almoçaram de forma bastante suculenta e com laivos de pudim português, algures num dez de Maio e no meio do Mundo (veja-se que a linha do equador toca o sul do país insular e continua a atravessar, dali, o globo). Entretanto, depois do almoço tardio fez-se à estrada e acompanhado sempre da enfermeira que com ele fazia equipa nestas terras ‘presépio’, quase sem reis magos. Na viagem de carro, o doutor é intercetado por uma local que estava desesperada a pedir socorro, no meio da estrada. Motivo da aflição: tinha uma familiar, no casebre perto, a dar à luz.
Issa, juntamente com a enfermeira, subiu rapidamente as escadas e chegou a uma casa humilde, de soro fisiológico na mão. A luz era tão pouca, mas sustentada pelas velas. O que viu ali era como um presépio na sua forma mais digna e pura. Issa disse-me mesmo que relembrou a cena bíblica de natividade: um bebé nascia, sem roupas para o abrigar, junto da mãe extenuada. E raminhos de ervas à volta que a avó utilizara, antes, para bater no ventre cheio da mãe, como costume local durante os partos. O bebé ficou com o nome do médico. Mas a mãe não percebera bem o nome do médico-salvador, entendeu-o como Cristódio. E assim ficou. Uma mistura interessante que evoca o nome de Cristo e o primeiro nome do médico da AMI, tão conhecido naquelas bandas. Portanto o novo filho de África e o médico português ficaram Xará um do outro, uma marca de nascimento para um e de crescimento para outro. Ficaram “um do outro”. Aliás neste ‘presépio’, assim visto, os reis magos afinal existem e até são portugueses.
Pernoitaram, cansados. Todos na casa, cansados mas gratos pela dádiva de um novo Issa no Mundo. No dia seguinte, o médico-viajante tomou banho ao céu: chuva tropical. As torneiras estavam sem água, provavelmente porque as canalizações foram roídas pelos suínos selvagens que costumam rondar aquelas zonas. Muito comum tal acontecer e daí que a decisão foi rápida: tomar banho com a água emprestada pela chuva. Depois fez o penso no umbigo do seu primeiro afilhado africano. Ainda de coração confrontado com aquela belíssima cena de natividade, o médico e a enfermeira despediram-se da família. Voltaram à aldeia e depois à capital. Entre um lugar e outro foram distribuindo brinquedos usados pelas crianças e pelos lugares carentes. Sim, as histórias das missões humanitárias que costumamos ouvir são reais e enchem a alma de lágrimas. Os nossos brinquedos são tesouros para as crianças em países africanos que não merecem a desigualdade que vivem.
Algo que me enterneceu: é que houve momentos em que Issa dava tudo de si, entre as ajudas médicas em África e noutros continentes, mesmo quando soube de um acidente da mãe em Serra Nevada. Estava longe do Mundo, naquele momento da notícia e, todavia, estava no lugar onde nasceu o ‘Mundo’ que conhecemos: em África. Mesmo assim teve de continuar a aliviar as dores das pessoas que foram como uma família à mesa de Natal, aliviando as suas próprias dores de não poder estar perto da sua família e da sua mãe em contexto crítico. Sentiu saudades também do conforto de Portugal. Riscos e grandezas de humanidade de quem começou a percorrer o planeta para o salvar, durante anos. Somando nações, amizades e histórias.
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