Texto: Carla Lourenço / Fotografia: João Pedro Augusto

Na sala vazia estendia-se um pequeno-almoço para seis. As panquecas aos pares, o pão encestado, o doce de leite, o café, o termo pronto para os chás. Disfarçado na azáfama da mesa, o pacote de chocolate em pó transformar-se-ia em felicidade instantânea, quente, reconfortante. Os braços cruzavam-se em trocas e movimentações. A colher do chá barrava manteiga. A faca do doce fazia refém a manteiga de amendoim que ainda vinha de Portugal. A água quente era despejada em todas as canecas. Interrompemos o silêncio. A Camille contou-nos que faz kitesurf com o pai. O Max gosta de ténis. Pouco depois das 8, o João apressou-se para o quarto antes de carregarmos o material. Podíamos ou não estar atrasados.

No terraço do jipe, o Luís ia acondicionando as mochilas uma a uma, novamente. Acondicionámo-nos nós, depois, e partimos. Deixámos San Juan El Rosário com uma calendarização preparada ao detalhe, mas nós não estávamos preparados para o que estava para vir. O deserto que tínhamos começado a conhecer na tarde anterior estava prestes a mudar. Fazendo caminho junto a uma linha ferroviária, a vegetação verde-seco fazia-se paralela e bem comportada, previsível como quem não quer a coisa. Assim foi até nos desaparecer da vista sem deixar nota ou recado.

Quando menos esperávamos, tínhamos aterrado nos primórdios de um outro planeta. O solo vermelho pedregoso estendia-se como uma passadeira larga com vista para o vulcão, já no lado do Chile. Do cume, também ele avermelhado, escorria uma nódoa branca, restos do jantar de inverno, e o fumo cinzento  que arrotava denunciava um vulcão acordado, com a barriga às voltas. Aqui e ali, grandes bolbos resinosos de um verde alface contrastavam com o cenário monocromático.  Yareta, chamam-lhe os nativos. Envolvi um deles com o corpo todo, e durante alguns segundos foi só meu. Olhámos o mundo de todas as alturas possíveis e continuámos.

Pelo Altiplano andino: lagoas, flamingos, geiseres e uma piscina termal ao cair da noite
créditos: João Pedro Augusto

Entre curvas e contra-curvas, o jipe foi deslizando no deserto, conquistando subidas como um alpinista experiente. As pedras, que entretanto acinzentaram, levaram-nos a uma pequena lagoa. Cañapa. Encontrámos uma água azul marinha disfarçada de oceano profundo, bordada a amarelo pelos arbustos que cresciam nas margens. Um sinal de madeira gasto pelo sol andino mal deixava ler que estávamos numa zona húmida. E ali, à nossa espera, vestidos de cor de rosa, os pequenos flamingos de James exibiam-se, levantavam voo, abriam as asas para mostrar as penas brilhantes, já oleadas. Desfilavam elegantemente e deixavam-se fotografar de perto. Ao fundo, no sopé da montanha, um grupo de vicuñas corria para o almoço. Corremos nós depois, quando o Luís nos chamou ao som de um assobio. Atrasados, sempre atrasados para seguir.

No altiplano e entre as cordilheiras andinas perdemos a noção das distâncias e das dimensões. Tudo parece imediatamente perto e desgastantemente longe. Os quilómetros acumulam-se a diferentes velocidades e, invariavelmente, os caminhos afunilam num ponto de encontro.

Pelo Altiplano andino: lagoas, flamingos, geiseres e uma piscina termal ao cair da noite
créditos: João Pedro Augusto

Entrámos numa zona de controlo militar, devidamente autorizados, e estacionámos à margem da Lagoa Hedionda. Nada nos pareceu horrível; muito pelo contrário. Fui caminhando no solo húmido, enterrando as botas fundo, marcando-as de sal. Emaranhados de penas perdidas formavam um carreiro branco perto da água. Sentei-me num banco de arbustos e assim fiquei: olhando os flamingos. Uns sacudiam-se, outros chapinhavam nos banhos matinais. Outros até, quais contorcionistas, giravam o pescoço para trás para ajeitarem as penas despenteadas. Um deles deixou-me aproximar. Vi-lhe o bico pintado de amarelo e preto que tremelicava rapidamente mergulhado na água, filtrando o almoço. Olhámo-nos demoradamente, como dois amigos que se encontram passados anos de interrupção. O seu pequeno porte encapsulava uma beleza que eu nunca tinha visto tão de perto. Sussurrei ao João que se aproximasse devagarinho, e ele lá veio pé ante pé. A câmara eternizava o meu amigo colorido, com uma planície de sal atrás. Demorei-me como sempre, emocionada, e foi a esforço que acertei a minha corrida cansada ao passo do João.

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créditos: João Pedro Augusto

Ao almoço, faziam fila as pessoas e os jipes envoltos em pó junto à lagoa. Partiram, depois, em várias direções, perseguindo os diferentes pontos cardeais. Rumámos a sul em busca da Arbol de Piedra que se ergue do solo, como se raízes carnudas a sustentassem num campo relvado de areia. A Camille e o Max descansavam, prostrados no terreno arenoso. Debaixo do sol desértico, o Abel e o Leo desdobravam-se em posições para memórias fotográficas, ora esticando o braço para um autoretrato, ora retratando o outro na paisagem. O João plantava-se imóvel em toda a parte, com a câmara na mão. Registava os momentos que ninguém via acontecer e sorrateiramente pedia mais uma subida, mais uma descida. Eu acedi sempre. No meio do nada - porque era esse o nosso trajeto - duas viscachas selvagens deleitavam-se com o calor do início da tarde. De pelo castanho, orelhas compridas, e focinho acusadoramente simpático deixaram que nos aproximássemos, vigiando-nos com atenção do alto do rochedo.

Pelo Altiplano andino: lagoas, flamingos, geiseres e uma piscina termal ao cair da noite
créditos: João Pedro Augusto
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créditos: João Pedro Augusto

De volta ao jipe, o Luís anunciava a próxima paragem: a Laguna Colorada. Para lá chegarmos, para além de colecionarmos as diferentes formas do deserto e apontarmos para mais um ou dois grupos de alpacas, foi necessário entrar na Reserva Nacional de Fauna Andina Eduardo Avaroa. Como numa miragem cinematográfica, no fim do caminho de terra batida que levava a uma planície elevada e terminava com um cardume de arbustos amarelos, surgiu-nos a grande imagem da lagoa. Aos nossos olhos, estendia-se uma bandeira ovalada de três cores. Hasteada há centenas de milhares de anos, não se viu sacudida pelo vento enquanto ali estivemos. Perto da margem, o azul marinho pouco profundo acolhia um pequeno grupo de vicuñas que pastava com os focinhos submersos.

Pelo Altiplano andino: lagoas, flamingos, geiseres e uma piscina termal ao cair da noite
créditos: João Pedro Augusto
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créditos: João Pedro Augusto

Do alto da tal planície era possível distinguir as três espécies de flamingos residentes. As patas amareladas, a plumagem esbranquiçada e o flanco bastante enegrecido denunciavam os flamingos Andinos, que se misturavam com os flamingos Chilenos e os de James - os mais pequenos de todos. Desci até à margem, para os sentir (de) perto. Vi a água a correr, sorrateira, como se nos quisesse passar despercebida. No extremo oposto da lagoa, o azul dava lugar a um vermelho-sangue, forte. Cobria uma área alargada e assumia-se como a marca diferenciadora em relação a todas as outras lagoas que havíamos conhecido.

Fugiu-me a memória para as salinas da Ria Formosa, que no fim do verão se pintam de cor-de-rosa, com os carotenóides produzidos por extensos agrupamentos de Dunaliella salina, microalgas verdes que adoram lagos e lagoas salgadas. Na Laguna Colorada, tão longe e tão perto do Algarve, o processo é precisamente o mesmo. E ao centro, uma ilha branca, talvez de cloreto de sódio talvez de boro - não cheguei a perguntar -, separa as duas cores do arco-íris. Deixei-me estar em silêncio, fechando e abrindo os olhos, como se um obturador interno captasse a paisagem e assegurasse que nunca a iria esquecer. Encontrámos o paraíso na Terra e os portões abriram-se para nós.

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créditos: João Pedro Augusto

A intensidade sentava-se, apertada, no banco de trás do jipe e viajava connosco. Olhei-a por fim e aceitei, simplesmente, que o coração acelerado que sentia no peito e a latejar no pescoço não se devia à privação de oxigénio. Era ela, ali, em todos os momentos. Talvez tenha sido ela que deu indicações ao Luís para nos levar a ver os geiseres, que só esperávamos na manhã seguinte. As nuvens de enxofre elevavam-se como um bafo furioso e mal-cheiroso da Pachamama e as suas entranhas borbulhavam cinzentas e quentes. Caminhámos no apocalipse, com os raios de sol do fim do dia a atravessarem um inferno que nos gelava a cara e as mãos. Percorri as nuvens a pé, a medo, com visão reduzida, impulsionada pelo vento forte. Chamei o João que se mantinha aprisionado pela câmara no meio do enxofre. Pouco depois, qual rei D. Sebastião, vi-o emergir do nevoeiro. Intacto, extasiado e com o coração a mil.

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Chegámos a um abrigo de pedra ao final do dia. O sol já não se deixava ver, escondido por detrás dos contornos montanhosos. A umas dezenas de metros da casa que nos recebeu para um chá quente, uma poça termal fumegava corajosamente, contrariando o frio que se estendia do chão para os nossos corpos. Antes de mais, recolhemo-nos. O quarto central abria-se para seis camas de cimento, cada uma com três mantas pesadas que fariam braço de ferro com o ar gélido da noite. Aproveitámos a luz que só se manteria até às 22h00 e empoleirámos os telemóveis em tomadas triplas, à vez.

O jantar veio pouco depois. Brindámos com um vinho sul-americano e começámos a convencer-nos de que a noite teria de terminar dentro de água. O João, racional como só ele, mostrava-se apreensivo e duvidoso. Sentia a temperatura a descer como alguém febril sente o corpo a aquecer em contínuo. Procurava por falhas lógicas num plano que tinha tudo para correr bem. A pressão de grupo levou a melhor no final da refeição e o João aceitou -  mas não me livrei de um olhar reprovador. Eu, que já tinha o fato de banho vestido como se de uma manhã de julho no Algarve se tratasse, gracejava palavras de encorajamento.

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créditos: João Pedro Augusto

Por fim, lá saímos para a rua, enrolados em duas ou três camadas de roupa, mais uma toalha. Ao longe, ouvíamos vozes e risos, mas a escuridão toldava-nos a vista. Tateando com os pés, como um pequeno grupo de pinguins, seguimos, patuscos, numa caminhada atrapalhada até ao pequeno balneário junto à água. Despi-me à pressa; a pele encolhia-se, comprimindo-me o interior, e eu marchei acelerada para a poça. Juntei-me às silhuetas molhadas que encontrei em contra-luz, só com as cabeças de fora - cabelos apanhados com elásticos, para que a água não lhes tocasse. Ao mergulhar as pernas, para procurar o fundo da piscina natural, os mais de 30º C derreteram-me e eu passei ao estado líquido. Deixei-me ficar assim, inundada até ao pescoço e poucos minutos depois vejo o João aproximar-se, saltitando nas pontas dos pés - os olhos glaciais de arrependimento -, ruminando pragas inaudíveis a uma decisão forçada. Quando também ele se entregou à poça termal, ouvimo-lo exclamar inadvertidamente um aliviado “ahhhh”, ao qual juntámos os nossos risos.

Deixámo-nos boiar, com a cabeça pousada na borda da terma. Acima de nós, um infinito pano negro estendia-se em todas as direções, engolindo a noite, fazendo-se noite. Traças cósmicas, comendo aqui e ali o tecido, deixaram pequenos buracos distribuídos aleatoriamente por onde se escapava a luz. Desenhando com o dedo no alto encontrei Escorpião, desta vez sem estar de cabeça para baixo, como me habituei no Hemisfério Norte. Depois, apontei a Júpiter com uma linha imaginária e continuei a sonhar acordada. Interrompi o silêncio que me unia ao João - ainda que todos à nossa volta insistissem num burburinho ruidoso - quando à minha frente se atravessou uma estrela cadente. Perguntei-lhe se a tinha visto. Disse-me que sim. “Pediste algum desejo?” - insisti. “Não, já estou aqui” - respondeu.