Passeamos pela Kite Beach, uma das praias paradisíacas que emolduram a ilha do Sal. A noite é amena, como são quase todas em Cabo Verde, mas, apesar de o clima relaxado e do “No stress” como lema da ilha, não estamos a passeio. Se durante o dia, esta praia é procurada por turistas e desportistas de todo o mundo para praticar surf e kitesurf, de noite, entre junho e novembro, são as tartarugas marinhas que chegam para desovar. A missão do grupo de voluntários que acompanhamos pela praia é a de encontrar as tartarugas marinhas que vêm todos os anos aqui desovar, tirar dados e proteger os ninhos.
No ano passado, a ilha do Sal contou com 54 mil ninhos de tartarugas. Este ano, o Projeto Biodiversidade, uma ONG que trabalha em conservação na ilha, já contabilizou 11 mil ninhos, mas a temporada ainda não acabou. Albert Taxonera, o diretor do projeto, explica: “Há uma grande variação entre as temporadas de desova, mas o número de tartarugas que nascem na ilha é desconhecido”. Sabe-se que cada ninho tem em média 82 ovos e nos viveiros desta ONG nasceram no ano passado 150 mil tartaruguinhas, mas este ano esperam muitas menos – “talvez cerca de 100 mil”.
“Por cada mil tartarugas que nascem apenas uma consegue chegar à idade adulta”, conta Albert, explicando que esta é uma estatística mais usada para a sensibilização do que para a ciência. Afinal, também há vários motivos naturais para que isto aconteça, mas infelizmente há muitos riscos para as tartarugas marinhas na ilha do Sal.
Patrulhas na praia e leis para afastar caçadores furtivos
A Kite Beach é patrulhada diariamente pelos voluntários do Projeto Biodiversidade. Para a frente e para trás, devagar, procuram-se os rastos que as tartarugas possam ter deixado na areia. Sem lanternas, para não as assustar, só se liga a luz de infravermelhos caso seja necessário. O principal objetivo da presença dos voluntários na praia é afastar os caçadores que procuram as tartarugas que chegam à praia para desovar.
Em 1987, Cabo Verde criou legislação para proibir a captura de tartarugas em época de desova e, a partir daí, o Governo continuou a adensar as proibições para proteger as tartarugas. Desde 2018 é considerado crime o consumo de carne ou ovos de tartaruga, bem como o abate, aquisição ou comercialização, mas a caça continua: a carne de tartaruga continua a ser um recurso alimentar.
“Apesar das leis, a morte de fêmeas que chegam à praia para desovar ainda é um problema observado em todo o país”, afirma Albert. São muitas as tartarugas que morrem todos os anos na ilha do Sal vítimas da caça furtiva. Este ano, ainda a época não acabou e a ONG já contabliza mais de cem animais mortos.
O campo magnético da Terra como bússola para encontrar o lugar de origem
O arquipélago tem uma das maiores aglomerações de desova de tartarugas-cabeçudas e é a única área de desova da espécie em toda a costa leste do Atlântico. Apesar de circularem por todo o globo, as tartarugas regressam ao sítio onde nasceram 20 a 25 anos depois para desovarem. Voltam a cada dois ou três anos e param por volta dos 45 anos.
Acredita-se que estes animais têm a capacidade de seguir o campo magnético da Terra para conseguirem encontrar o local onde nasceram. E esta espécie em particular é especialmente fiel ao local de reprodução.
Em 2020, nas dez ilhas de Cabo Verde, registavam-se mais 200 mil ninhos. O arquipélago era um dos três maiores locais de reprodução do mundo, depois da Florida, nos EUA, e de Omã, no Golfo Pérsico. Neste momento, com o aumento da procura por estas ilhas atlânticas, Cabo Verde pode já estar no segundo ou primeiro posto dos sítios mais procurados no mundo por esta espécie para nidificar. E a conservação torna-se ainda mais urgente.
As ameaças no rumo das pequenas tartarugas até ao mar
As tartarugas marinhas existem no planeta há mais de 150 milhões de anos e, durante este período, evoluíram em sete espécies distintas. Nos últimos cem anos, têm encontrado várias ameaças que põem em causa a sua sobrevivência. A União Internacional para a Conservação da Natureza inclui seis das sete espécies de tartarugas marinhas na Lista Vermelha de espécies ameaçadas. Em 2015, a União mudou o estado das tartarugas-cabeçudas de ameaçado para vulnerável, com exceção da subpopulação de Cabo Verde.
Além da caça, há outras ameaças. O crescimento do turismo é uma delas e revela-se sobretudo em forma de poluição luminosa – a luz proveniente dos resorts construídos à beira-mar é uma das causas de morte de milhares de tartarugas bebés.
Quando nascem, as tartarugas partem o ovo, saem da areia e procuram a direção do mar. Procuram a luz, a cor branca, a espuma das ondas a bater da areia, que conseguem ver com mais facilidade através do reflexo da lua a bater na água. A luz artificial, normalmente na direção oposta ao oceano, desorienta as crias que caminham incansáveis nessa direção. Muitas morrem comidas por cães, caranguejos ou corvos ou desidratam durante o dia enquanto procuram, perdidas, a direção do mar.
A própria construção de hotéis em cima da praia acaba por reduzir a extensão de praias com boas condições de desova, obrigando as tartarugas a procurem outros locais adequados.
Poluição, aquecimento global e risco de haver menos machos
Depois, o óbvio: o aquecimento global é outras das ameaças a esta espécie. Mas nas tartarugas, em que o género não se define pelos cromossomas, mas sim pela temperatura da incubação dos ovos, a elevação do nível do mar e o aumento da temperatura global podem ter impacto no desenvolvimento dos ovos, chegando mesmo a poder mudar mesmo as taxas sexuais.
Aos 29ºC há um equilíbrio entre fêmeas e machos, mas quando os ninhos são incubados a temperaturas mais baixas geram mais machos e a temperaturas mais altas mais fêmeas. O aumento da temperatura global pode fazer com que nasçam mais fêmeas do que machos, criando problemas de consanguinidade e de diversidade na espécie.
Sabemos que a poluição marinha é um problema global e um estudo, já em 2015, afirmava que 52% das tartarugas marinhas do planeta já tinham comido plástico. Segundo o Projeto Biodiversidade, a costa leste da ilha do Sal recebe anualmente toneladas de lixo marinho, e enquanto isto pode ser um obstáculo na chegada das fêmeas às praias para desovar, os recém-nascidos podem perder-se nos detritos de plástico. O mesmo acontece com as redes de pesca perdidas ou descartadas para o mar.
Defender o ambiente e trabalhar com as comunidades
Na praia, continuamos a patrulha com Lena Matsuda, Coordenadora de Marketing e Parcerias com o Turismo, da ONG. Encontramos dois voluntários perto de uma tartaruga. Ficamos quietos e com alguma distância a observar o processo de nidificação: a fêmea desova, ovo após ovo, tapa o buraco onde deixou os ovos, camufla a areia e ruma mar adentro. Antes de partir, os voluntários medem-na e tentam encontrar algum chip localizador. Senão tem nenhum, inserem-no num das patas dianteiras.
Do outro lado da praia, anda Albert Taxonera. Chegou como voluntário à ilha, em 2011, vindo de Barcelona para a campanha das tartarugas de uma ONG chamada SOS Tartarugas. Em 2012, assumiu a coordenação da equipa de patrulhas e em 2015 fundou a Associação Projeto Biodiversidade, da qual é agora diretor executivo. Albert estudou Genética e tinha interesse por primatologia, mas o destino acabou por o trazer para perto do mar. Ao longo deste tempo, percebeu que mais do que defender as tartarugas marinhas, era urgente e importante defender o ambiente e os ecossistemas.
“Trabalhamos na gestão participativa e na proteção das Áreas Protegidas, muitas delas incorporam as principais praias de desova de tartarugas, mas também na conservação das aves marinhas e das plantas endémicas e autóctones”, começa por explicar Albert. Esta ONG tem um foco importante na educação ambiental, principalmente vocacionado para as crianças, e envolve-se também com as várias atividades económicas da ilha. “Trabalhamos também com as comunidades piscatórias artesanais e com o sector turístico para promover a sustentabilidade nestas áreas", explica.
Albert Taxonera, diretor do Projeto Biodiversidade, com um grupo de pescadores de Pedra de Lume que se junta à proteção das tartarugas
“De pouco adianta proteger as tartarugas se não protegermos as dunas ou se não promovermos um turismo mais sustentável, por exemplo”, afirma o catalão, explicando a importância das dunas, por exemplo, para atenuar a poluição luminosa dos resorts.
Quem quer adotar uma tartaruga?
No dia seguinte à patrulha, encontramo-nos noutra praia. Agora de dia, debaixo de um calor intenso, onde turistas, sobretudo portugueses e do norte da Europa, apanham banhos de sol, debaixo de espreguiçadeiras e de chapéus de sol a condizer à porta de um hotel.
Ali, entre a praia paradisíaca e o resort, uma rede quadrangular guarda um conjunto de ninhos de tartaruga – um dos viveiros do Projeto Biodiversidade. Todos os dias às 16h30, há uma apresentação na praia. De forma leve e animada, começa-se por explicar as épocas de reprodução, o tamanho, peso e outras curiosidades sobre as tartarugas e apresenta-se o projeto, etc. Depois, o momento por que todos os turistas esperam: ver as tartarugas que acabam de nascer e sair dos ninhos que estão no viveiro.
Estes ninhos são recolhidos aquando das patrulhas pelos voluntários da noite. Quando notam que há ninhos em risco – sobretudo por estarem expostos à poluição luminosa –, recolhem-nos e tentam replicá-los no viveiro. Quando as tartarugas nascem, elas saem dos ninhos, são recolhidas e encaminhadas ao final do dia para o mar, aí num clima mais tranquilo e sem a azáfama turística. Estes viveiros têm uma taxa de sucesso de 70/75% e “estas tartaruguinhas têm mais possibilidades de chegar à idade adulta, sendo que pelo menos temos a garantia que chegaram ao mar.”
Aqui os turistas são também convidados a adotar uma tartaruga marinha ou um ninho. Esta é uma das melhores formas de apoiar a ONG, a pessoa escolhe o nome da tartaruga, pode por o seu nome ou de um amigo ou familiar, e a data de nascimento. Depois, o Projeto envia um email a anunciar o nascimento da tartaruga, uma fotografia e um certificado oficial.
O papel do turismo e dos turistas para a conservação
A dedicação é muita mas na equipa permanente deste projeto estão apenas 18 pessoas. Mas na época de nidificação a ONG cresce para umas 60 pessoas, a contar com os voluntários internacionais, que chegam de todo o mundo para ajudar as tartarugas marinhas cabo-verdianas, sobretudo nas patrulhas noturnas.
Além dos apoios dos turistas e de entidades oficiais, este projeto é apoiado ainda pela Tui Care Foundation, uma fundação associada ao operador turístico TUI. Manuel Ferreira, gestor de projeto da fundação, explica: “Nós somos uma entidade independente, mas temos o nosso dever e missão e temos uma plataforma nos destinos onde a empresa tem infraestruturas que nos permite criar impacto.”
A ideia é “utilizar o potencial do turismo numa força positiva, ampliando o impacto, providenciando fundos e conhecimento” e por isso as áreas de atuação da fundação – que já conta com 31 projetos em 15 países e espera no final deste ano ter 54 projetos em 22 países –, são sobretudo para reduzir o impacto ambiental do turismo, fomentar a educação ou formação das comunidades locais e integrá-las no mercado de trabalho.
Juntos, a TUI Care Foundation e a ONG, criaram um projeto em 2019 e começou a ser implementado em janeiro 2020. Desde então, até maio de 2022, 600 mil tartarugas de ninhos protegidos conseguiram chegar ao mar, fizeram-se mais de mil adoções e 200 jovens fizeram formação. Há dez empresas que fazem excursões e quatro hotéis envolvidos neste projeto. Foi também esta fundação que financiou as estruturas para criar os viveiros e o quiosque informativo para os turistas, bem como o drone que ajuda na patrulha noturna da praia.
O Projeto Biodiversidade e a TUI Care Foundation estão a renovar esta parceria para os próximos três anos, mas entretanto muito é preciso ainda ser feito. E tudo pode começar com pequenas atitudes. A alegria de ver as tartarugas marinhas no seu habitat é enorme e há mesmo quem viaje para Cabo Verde especialmente para as ver.
Albert deixa algumas recomendações a quem gosta destes animais: “O mais importante é que os turistas não visitem as praias de desova sozinhos. Se quiseram ir a ver tartarugas a desovar, pesquisem bem com quem vão fazer a visita, tem de ser sempre com uma empresa ou guia turístico legal. Depois, têm de fiscalizar o seu próprio grupo. As tartarugas são muito sensíveis, então não se pode ir em grupos grandes para a praia, nem usar luz branca, tem de se usar roupa escura, não usar perfume, etc.”
A ideia é não incomodar as tartarugas e minimizar o impacto que temos no ambiente, principalmente quando somos turistas nas casas e berçários de espécies vulneráveis.
*O SAPO viajou para a ilha do Sal a convite da TUI Care Foundation
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