A morte em viagem

por Teresa Osório

Esta parece ser uma história antiga, mas não é. Começa com uma das menções honrosas ganhas pelo Rui, num dos muitos prémios literários aos quais tem vindo a concorrer, que nos levou duas vezes à Régua. A primeira, para o Rui receber a distinção e a segunda, para participar num encontro sobre João Araújo Correia, autor que deu origem ao prémio. Em ambas as convocações ficámos na casa da minha avó e aproveitámos para passar o fim de semana com ela.

Quando fomos à entrega dos prémios, os seus olhos azuis brilhavam de orgulho. Dizia a todos os que encontrava que estava ali porque o neto (era assim que tratava todos os namorados dos netos) ganhara uma menção honrosa no prémio literário da cidade, ainda por cima com um texto inspirado na nossa família e na ligação que temos ao vinho do Porto.

No dia a seguir, na ressaca de uma noite feliz, a minha avó resolveu prolongar os festejos e convidou-nos para almoçar fora. Um dia muito quente. Daqueles em que o que vemos parece derretido e o nariz esforça-se para fazer entrar e sair ar dos pulmões.

Fomos para uma esplanada com guarda-sóis, onde estavam famílias inteiras a comer cabrito e cozido à portuguesa (com aquele calor!) e fizemos o nosso pedido. Uma salada e dois risottos de cogumelos. Já tínhamos bebido dois litros de água gelada. As nossas roupas colavam-se ao corpo de tanto suarmos e a avó continuava impecável, nem uma pinguinha de água no canto da testa.

Levantámo-nos várias vezes para ir à casa de banho molhar a cara e todas as parte do corpo que estavam a descoberto: braços, pernas e cachaço. O Rui até foi pedir pacotes de açúcar para se aguentar naquele calor até ao almoço chegar. Já a minha avó divertia-se com a situação, ria-se e dizia que aquele calor só era suportável com o hábito. Para a minha avó era só mais um dia normal, para nós, o inferno na terra.

Avó da Teresa
Avó da Teresa A avó da Teresa

Quando os pratos pousaram na mesa, havia dois que conseguiam estar quentes o suficiente para, expostos àquele ar já de si tão saturado, fumegarem até ao pano do guarda-sol. Só a minha salada parecia um mar de frescura: nenhum legume cozido, tudo "au naturel" e ainda lhe juntaram fruta acabada de sair do frigorífico. Percebi que tinha acertado na minha escolha. Olhei para o Rui, que soprava em direção ao garfo, não sei se na esperança de resfriar o risotto ou de arrefecer o dia todo. Suava cada vez mais e a expressão de desespero mascarava-lhe a cara.

Sugeri trocarmos de prato, não aceitou. Menti, disse que me estava mesmo a apetecer o risotto. Acabámos por fazer a permuta.

Não sei se por se ter apercebido que dei a salada ao Rui, pois achei que ele ia desmaiar de calor, ou se porque aquele sol abrasador mexeu com ela, mas a minha avó começou a falar connosco sobre o que era amar uma pessoa e os desafios de uma relação.

Contou-nos que nos anos 70 tinha sido convidada, juntamente com o meu avô, a formar uma associação de famílias católicas do Douro. Naquela altura havia algumas famílias do Porto e de Lisboa que tinham vindo morar para ali e se sentiam desamparadas e aquela era uma maneira de fazerem amigos. Os meus avós aceitaram, eram os dois "bons vivants". A dada altura, o padre apercebeu-se de que poderia ser útil haver alguns casais que falassem com homens e mulheres da paróquia sobre relações amorosas e os meus avós ofereceram-se. Segundo a minha avó, falavam sobre sexualidade sem a presença constrangedora do padre.

Perguntámos-lhe pormenores, contou-no-los. E no fim confessou-nos que depois de "estar" com o meu avô, ambos agradeciam a Deus pelo bom momento que tinham passado e pediam que se voltasse a repetir por muitas noites. O Rui, que é mais espiritual que eu, sentiu-se encantado. Eu gostei mais da parte dos meus avós terem a abertura de espírito para, numa época ainda tão pudica, conversarem com outras pessoas sobre estes assuntos e fiquei admirada por nunca ter sabido destas histórias antes.

Somos uma família enorme: os meus avós tiveram seis filhos, oito netos e cinco bisnetos. Se lhes juntarmos os respetivos cônjuges, em cada almoço mensal há mais de trinta pessoas à mesa. Claro está que em encontros como estes, a intimidade esvanece-se em conversas feitas a demasiadas vozes. Mas em fins de semana como aquele, a três, podíamos conversar horas sem fim e isso era bom.

Quando voltámos, meses depois, para o encontro acerca do João Araújo Correia, estávamos com o coração dividido. É que nesses mesmos dias, no Porto, iam entregar os prémios de um outro concurso, o de Jovens Criadores, promovidos pela Fundação da Juventude, e nós não iríamos poder assistir.

No entanto, já nos tínhamos comprometido tanto com os organizadores do evento na Régua, como com a minha avó, por isso não nos restava outra opção se não ver a entrega dos prémios pelo Facebook.

Era outono, trocámos a esplanada abrasadora pela varanda da casa da minha avó com vista para o rio, algumas vinhas e para a cidade eternamente abafada e estragada pela brutidão dos prédios altos. Estava uma noite agradável, daquelas sem vento que nós, vianenses, pouco conhecemos. Servimo-nos de vinho do Porto do decantador para duas provedeiras, nome dado aos cálices baixos, finos, afunilados e ligeiramente abalonados, usados religiosamente naquela casa para servir a melhor bebida do mundo.

Desta vez foi o vinho do Porto a dar o mote à conversa da minha avó. Contou-nos até onde ia a casa do avô Armando (pai do meu avô), que tinha começado o negócio do vinho do Porto Borrajo. Fez-nos a cronologia da sua história, desde os galardões que o vinho tinha ganhado, até à fase em que só restavam algumas pipas guardadas num armazém do meu avô, das quais vamos todos bebendo com a nostalgia de quem sabe que aquele sabor doce, espesso e melado não vai durar para sempre. Nada dura.

A história das cheias veio por arrasto, como acontece quando a água entra terra adentro.

Neste lugar os elementos da natureza estão muito presentes. Olha-se para os montes e não há lugar sem um socalco. Houve aqui muita comunhão entre o Homem e a Terra (mas duvido que tivessem agradecido no final e pedido para que houvesse repetição). No verão, um calor abrasador. No inverno, a água a querer namoriscar com as ruas.

Num desses namoros, a casa dos meus avós inundou, os móveis boiavam e inchavam. Calhou de terem vários amigos dos filhos de visita nesse dia, que colocaram tudo no piso de cima.

Gente havia para ajudar, faltava era comida para todos (e meio de transporte para ir buscá-la). Ligaram para a proteção civil e, passado pouco tempo, apareceu um barco da polícia à porta de casa munido de pão e sumos para todos.

Já o vinho do Porto se tinha evaporado dos nossos cálices, quando me levantei para os reencher. Olhei da varanda para a sala de jantar com a sua mesa enorme, agora solitária, sem gente a apoiar nela os seus cotovelos. No teto um candeeiro. O candeeiro mais feio que eu já vi. Sempre que entrava naquela sala não conseguia deixar de pensar no quão horrível era e como destoava do resto da casa. Naquela noite resolvi perguntar à avó onde o comprara. Se houvesse uma boa história por trás, poderia ser que deixasse de me fazer tanta confusão.

Bingo! Havia uma história, claro.

Candeeiro
Candeeiro O candeeiro

Contou-me que depois de se livrarem da despesa de terem seis filhos na universidade e depois do meu avô começar a vender mais amiúde parte do vinho do Porto que ainda sobrara, começaram a viajar. Um dos destinos foi Itália. Quando estiveram em Veneza resolveram visitar Murano e uma das suas muitas fábricas de vidro. Viram várias demonstrações de como se faziam aqueles objetos tão minuciosamente trabalhados. Entusiasmaram-se com o detalhe e o engenho como se de socalcos em vidro se tratassem. E compraram um candeeiro de flores de vidro. A minha avó revivia a história enquanto ma contava.

Orgulhava-se daquela compra e eu só pensava que ainda bem que nunca dissera que não gostava dele, porque na verdade desde aquele dia começara a gostar. O candeeiro desmontava-se em peças e pecinhas. Era impossível levá-lo no avião, tanto pelo espaço que ocupava, como pelo material de que era feito. Falaram com os correios locais e o envio foi programado. Pensaram que seria um envio único, mas não. Ao longo dos meses seguintes foram recebendo o candeeiro bocado a bocado. O objeto ia ganhando vida à medida que chegava mais uma encomenda. Vê-lo todo pendurado na parede soava a uma verdadeira flor que se plantou, regou, podou até florescer em todo o seu esplendor.

O fim da tarde chegava, o Rui já não conseguia conter todo o nervosismo que sentia. Andava de um lado para o outro, irrequieto. Falava sozinho. Não sei a que santos pedia, que mantras soletrava ou que espécie de argumentos inventava para encaixar na sua cabeça quer a derrota, quer a vitória. Eu e a minha avó abrimos o Facebook no telemóvel e conectamo-nos à sessão de entrega de prémios. O Rui continuava a alguns metros de distância a mexer-se tanto como um tubarão que está sempre a nadar para não morrer. Eu relatava-lhe aos berros: "Ainda não estão na categoria de escrita". A minha avó ria-se, mas estava nervosa. Pedia-me para deixá-la ver melhor o ecrã. Olhava para mim e dava-me a mão.

"Rui, é agora! Vão anunciar o vencedor da categoria de escrita".

Ouvimos o nome dele. Gritámos tanto que tive medo que as ondas sonoras partissem o candeeiro da sala de jantar.

Chorámos os três, abraçámo-nos. Depois rimo-nos muito. A minha avó agarrou nas duas mãos do Rui com força, era um gesto que fazia sempre que queria dizer algo importante a alguém, cerrou a cara: "Tens de acreditar em ti!"

Estávamos felizes e notava-se que a minha avó regozijava por estar a viver aquilo connosco. Numa situação normal ou tínhamos ido ao Porto receber o prémio em mãos ou estaríamos em Viana e a minha avó na Régua. Viver aquela alegria com a minha avó foi totalmente inesperado e algo que não aconteceria, se não por coincidência. No dia a seguir, ligou ao meu pai a contar que tinha adorado aquele momento.

Esta tinha sido a última entrega de prémios a que o Rui não pudera assistir, até ontem de manhã. Já sabíamos que ele estava entre os cinco finalistas dos Prémios Fnac, por isso nós (e os nossos amigos que nos vieram visitar) ansiávamos pela cerimónia marcada para o dia 3 de junho.

Acordámos nesse dia e "(...) o Rui já não conseguia conter todo o nervosismo que sentia. Andava de um lado para o outro, irrequieto. Falava sozinho. Não sei a que santos pedia, que mantras soletrava ou que espécie de argumentos inventava para encaixar na sua cabeça quer a derrota, quer a vitória. Eu, a Luísa, o João Guilherme e o João Aladino abrimos o Facebook no telemóvel e conectámo-nos à sessão de entrega de prémios. O Rui continuava a alguns metros de distância a mexer-se tanto como um tubarão que está sempre a nadar para não morrer. Eu relatava-lhe aos berros: "Ainda não estão na categoria de escrita". (A minha avó ria-se, mas estava nervosa. Pedia-me para deixá-la ver melhor o ecrã. Olhava para mim e dava-me a mão.) "Rui, é agora! Vão anunciar o vencedor da categoria de escrita". Ouvimos o nome dele. (Gritámos tanto que tive medo que as ondas sonoras partissem o candeeiro da sala de jantar.)

Chorámos os cinco, abraçámo-nos. Depois rimo-nos muito."Sei que a minha avó não está aqui e que a história de entrega de prémios com ela é antiga, mas não é. Ela apareceu em itálico e a história é recente, repetiu-se. O Rui ganhou o Prémio de Jovens talentos da FNAC. E eu, um sinal de que a minha avó está connosco.

Dois dias depois de termos vindo para a Colômbia, a minha avó iniciou a radioterapia. Passados cinco meses, a única situação que me fazia ter muito medo de me lançar nesta viagem aconteceu. A minha avó partiu. Muitos de nós, familiares, pusemos em causa a decisão dela de continuar o tratamento, mesmo quando todos à sua volta desistiam. Ela e outra senhora foram as únicas que levaram a radioterapia até ao fim. Mas agora, olhando para trás, acho que o desfecho seria sempre inevitável e esta insistência em continuar foi só mais um exemplo de persistência que nos deixou.

Sei que não é o tema mais alegre para abordar numa crónica sobre viagens. Porém, acredito que o medo da morte de alguém que nos é querido seja frequentemente um impedimento para muitos se decidirem a viajar e, por esse motivo, quis dar o meu testemunho.

Dias antes da minha avó morrer ponderei muito em voltar a Portugal. Dias depois também. Encontrava várias razões para não o fazer: havia muitas coisas que ainda queria ver aqui e sabia que provavelmente não teria essa oportunidade tão cedo, os nossos amigos estavam quase a chegar para nos visitarem, mas a mais forte era que a minha avó tinha sido a única das nossas quatro avós a dizer que tinha muito orgulho de ter uns netos a fazerem uma viagem destas. Disse-nos que ia ser uma experiência inesquecível e para não duvidarmos da nossa decisão.

Sei que ela esteve comigo no calor abrasador do México, nas rosas dos jardins de Jardin, iguais às dezenas que tinha espalhadas pelo seu quintal e que um dia resolveu cortar com medo que os netos, na altura pequenos, se picassem. Sei que apareceu na forma das duas senhoras, avós de outros netos, que nos acolherem também em Jardin.

E, secretamente, espero ter algum neto que me pergunte que raio de "cangalhos" são estes nas paredes que trouxe do México e do Equador. Eu vou-lhe contar as histórias desta viagem e ele, se tiver a sorte de ser o único a herdar os olhos azuis da avó (como me calhou a mim), vai ficar com dois mares de lágrimas a brilharem-lhe na cara.

Projeto “Cuentame Quilómetros”

“Cuentáme-quilómetros” é o nome do projeto vencedor do “Emunicipa-te” de Viana do Castelo. Um projeto de bolsas municipais de gap year através do qual, durante 6 meses, a Teresa Osório e Rui Coelho vão viajar pela América Latina. Podem acompanhar a sua viagem também no instagram.

O projeto “Emunicipa-te”

O “Emunicipa-te”: Programa Municipal de bolsas de gap year é um projeto desenvolvido pela Gap Year Portugal em parceria com vários municípios. O projeto já vai na terceira edição e todos os anos aumenta o número de municípios aderentes que premeiam jovens dos 18 aos 30 anos residentes ou estudantes no seu concelho com uma bolsa de gap year, que pode ir até aos 6.500€. As candidaturas para as bolsas de gap year de 2023 dos municípios de Odemira, Viana do Castelo e Oeiras já se encontram abertas no site oficial assim como o respetivo regulamento. Mais municípios parceiros serão anunciados em breve.