Por: João Damião Almeida
Começámos por sul, vindos da África do Sul e com nove dias para chegar à capital, e daí voar de regresso. Alugámos um carro pequeno e apenas com tração dianteira. Ainda teríamos de abastecer de água, mantimentos e alguma gasolina extra para as viagens, mas sentíamo-nos prontos e quase inquietos para vivenciar este país-deserto.
A primeira paragem é logo uma agradável surpresa. O desfiladeiro do Rio Fish é uma das atrações mais populares do país e o maior desfiladeiro de África, apenas superado no mundo pelo Grand Canyon (EUA). O rio, hoje em dia praticamente seco, foi erodindo as rochas à sua passagem, serpenteando pelo planalto e criando este labirinto em grande escala. Os vários miradouros por onde passamos lutam entre eles por oferecer as melhores vistas.
Se descer pelas ravinas e percorrer os trilhos do desfiladeiro é apenas possível numa excursão de cinco dias, acabamos por ser forçados a aventurar-nos nas margens íngremes quando o drone que levamos connosco cai para a base do desfiladeiro. Durante duas horas, caminhamos sobre as pedras soltas das margens e sobre a terra ressequida do antigo leito, com olhar atento aos possíveis predadores rastejantes e ao tesouro que procuramos (com sucesso) reaver.
Seguimos caminho. Para o próximo destino serão 450 quilómetros pelas estradas em alcatrão ou terra batida do deserto da Namíbia. Aqui ainda não vemos dunas ou areia, mas a vegetação rara e rasteira já nos diz que estamos num deserto. As vistas são sublimes. Sobre nós, o azul do céu límpido é esmagador. Estamos mergulhados numa imensidão de terra seca e arbustos em tons de sépia. Apenas algumas montanhas ao fundo dão um sentido de orientação na monotonia da planície.
A Namíbia é o segundo país com menor densidade populacional, e isto é notório. Passam-se dezenas de quilómetros sem passarmos por outro carro. Os nomes que aparecem no mapa acabam por não ser cidades ou aldeias, mas simples cruzamentos, por vezes, com um hotel ou bomba de gasolina.
A primeira concentração de casas e infraestruturas a que familiarmente conseguimos chamar de vila, acontece quase 600 quilómetros de estrada depois de entrar no país.
Luderitz é uma pequena cidade portuária, de arquitetura colonial e Art Nouveau, de uma história de diamantes, ferro e ferrovias.
À volta da povoação, a terra seca já deu lugar à areia e é aí que encontramos outro lugar aguardado da Namíbia: Kolmanskop.
A cidade fantasma de Kolmanskop foi construída no início do último século pelos alemães para exploração de diamantes naquela região e foi abandonada nos anos 50 por esgotamento desses minérios.
Setenta anos depois, as mansões palacianas mantêm-se, as casas em madeira e estilo colonial estão preservadas, mas a vila inteira foi engolida pelo deserto. As dunas tomaram conta, entraram pela cidade sem pedir licença, assaltaram as portas, afundaram as casas. Como um mar de areia parado no tempo, o deserto e as ruas de Kolmanskop são hoje um só.
O legado alemão no país do Namibe é forte e diverso, apesar do território ter sido um protetorado alemão por menos de 40 anos. Além da língua alemã (não-oficial) que ainda é preponderante, e dos muitos brancos germano-descendentes, a influência cultural e arquitetónica é naturalmente forte no único país africano para onde os colonizadores alemães migraram em quantidade. É por isto que, por exemplo, quando conduzimos pelo interior do país, já ao final do dia, é possível surpreendermo-nos com o castelo alemão de Duwisib por entre a aridez da paisagem. O aspeto da fortificação é medieval e serviu de residência a um oficial alemão no início do século XX.
Viajar ao fim do dia traz novas cores à paisagem. Neste país, todos os pores do sol são maravilhas da natureza. A partir das 17:30 o sol desaparece no horizonte e traz a noite e novos desafios na estrada. Apesar da via, mesmo em gravilha, ser quase sempre muito direita e uniforme, traz por vezes pedras maiores ou lombas que obrigam à cautela. De noite, a ameaça dos animais a atravessar a estrada é real e mais presente. Por várias vezes, travámos a fundo por passarem à frente do carro, muito próximos e a correr, iluminados apenas pelos faróis dianteiros, esquilos, coelhos ou antílopes.
As dunas começam a ser usuais à medida que nos aproximamos da costa. Todo este deserto que aqui vemos, que vai da África do Sul a Angola e corresponde à região costeira da Namíbia é o deserto mais antigo do mundo. É uma região árida ou semi-árida e aqui encontramos algumas das dunas mais altas do planeta. Estamos a chegar a Sossusvlei, um dos locais mais turísticos do país. Esta é uma zona de dunas e lagos secos onde a principal atração, o Deadvlei, consiste num antigo oásis de árvores petrificadas. Apesar das árvores estarem mortas há centenas de anos, permanecem preservadas no clima extremamente seco e formam um dos locais mais fotogénicos da viagem.
Ao fim de três dias na Namíbia, encontramos nas cidades costeiras de Swakopmund e Walvis Bay o primeiro centro urbano significativo. Em Swakopmund perdemo-nos a ver os mais bem preservados exemplos de arquitetura colonial alemã ou a Krystall Galerie com uma coleção fascinante de cristais e pedras preciosas. Em Walvis Bay visitamos as lagoas e as colónias de flamingos, as salinas de água cor-de-rosa e a Duna 7, considerada a maior do país.
Saídos destas cidades litorais, o próximo destino urbano é a capital, mas procuramos o percurso mais longo porque por esta altura já sabemos que o que conta é também o caminho.
Subimos ao longo da Skeleton Coast (costa dos esqueletos), onde as dunas beijam o mar e onde a enorme quantidade de náufragos e naufrágios deu o nome macabro à região. É aqui também, em Cape Cross, batizado pelo descobridor Diogo Cão, que uma colónia de milhares de lobos-marinhos tem a sua morada.
Passamos por paisagens lunares, onde montes e crateras rochosos em tons de cinza e barro e a raridade da vegetação nos transportam para um outro planeta, intocado e inerte.
Percorremos o parque nacional de Spitzkoppe, um lugar de inselberge (montanhas-ilha) com formas características, de trilhos apetecíveis e pinturas rupestres.
Visitamos uma aldeia-museu tradicional, onde um grupo de San vive e nos mostra as rotinas destas culturas indígenas milenares de caçadores-recolectores. Estão entre as culturas “vivas” mais antigas a pisar a Terra e mostram-nos atividades relacionadas com a caça, o controlo do fogo ou a confeção de colares e pulseiras. Falam-nos em inglês mas Khoisan entre eles, a língua dos cliques com sons únicos desta região.
Por fim, chegamos à capital. Windhoek (lê-se Vinduque) é o centro político, económico e cultural do país, reunindo para si o título de única cidade da Namíbia com mais população que o município da Moita. Aqui vemos grandes prédios e centros comerciais, instituições públicas, uma baixa de ruas pedonais agitadas mas também museus, cinemas e zonas verdes. Visitamos ainda mercados de artesanato e o Memorial da Independência sobre a história da luta longa e sangrenta pela libertação deste Estado.
Queremos despedir-nos da viagem com uma refeição em grande e deslocamo-nos até ao Joe’s Beer House para uma última ceia. O mais célebre restaurante de Windhoek - enorme, muito animado e bem decorado - oferece uma experiência gastronómica única: pedimos e provamos espetada de crocodilo, de zebra, de oryx, de kudu e de springbok. Se nunca tínhamos comido um réptil e raramente provado antílopes ou gazelas, a viagem gastronómica foi um sucesso e despedimo-nos da Namíbia com um último safári africano.
A Namíbia é um país repleto de lugares mágicos que nos transportam no tempo ou no espaço para dimensões longínquas. Mas é também um país de muito caminho, de horas ao volante por nacionais desenhadas à régua, de estradas de terra e pneus furados, de imprevistos e aprendizagens sobre a vida no deserto. E, neste nosso último país africano, como nos outros milhares de quilómetros de alcatrão que lhe antecederam, vale a pena aprender a apreciar a estrada. É só olhar pelo vidro da janela para nos surpreendermos com as paisagens mais incríveis da viagem. Basta saborear atentamente o caminho para aprender África por inteiro. E, à noitinha, quando o continente já dorme, ficamos a lembrar as maravilhas que ali aprendemos, debaixo de um manto preto de galáxias e constelações, o mais bonito que alguma vez vimos.
Projeto Prá frente
O Projeto Prá Frente foi criado por dois jovens engenheiros, com a intenção de conhecer (e partilhar) uma perspetiva completa do Sudeste Africano, focando-se não só no seu património deslumbrante, mas também nas suas pessoas e naquilo que tem para oferecer para o futuro.
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