Irão: o país das pessoas acolhedoras que conquistou estes viajantes portugueses
Nasir al-Mulk Mosque, Shiraz créditos: Rui Batista Barbosa

Há mais de um mês, o Irão ocupa espaço nas notícias pelos piores motivos. O país encontra-se em ebulição social após a morte de uma jovem, Mahsa Amini, alegadamente assassinada pela polícia da moralidade pelo uso incorreto do véu islâmico. O acontecimento foi rastilho para protestos populares que clamam por mais liberdade e respeito pelos direitos das mulheres. As manifestações estão a ser violentamente reprimidas pelo regime.

O regime teocrático e a imagem criada pelos media podem ser motivos para que muitos risquem o Irão dos seus planos, mas estes quatro viajantes portugueses ouvidos pelo SAPO Viagens contrapõem com outros argumentos e mostram o quão fantástica pode ser uma visita à antiga Pérsia – quando a situação estiver mais estabilizada.

A seguir, confira relatos de quem esteve no Irão e voltou surpreendido (apaixonado, até) pelo país e, principalmente, pelo seu povo.

Ana Gil Pires visitou o Irão em 2017. “A cultura persa sempre me suscitou curiosidade”

Ana Gil Pires em Yadz
Ana Gil Pires em Yadz créditos: DR

Sabia que era um país cheio de tesouros por descobrir, camuflados por um regime ultraconservador. Muita gente dizia para não ir, que era perigoso, mas eu já estava a par da opinião de outros viajantes que tinham ido e sabia que esse medo era muito devido ao que a comunicação social incutia.

Viajei com algumas reservas. Já sabia que tinha de usar hijab, mangas compridas, partes de cima mais largas e que ia encontrar um país muito diferente do que alguma vez já tinha visitado.
Esperava encontrar pessoas reservadas e mais dificuldades logísticas – alojamento, transportes. Mas o que encontrei foi uma hospitalidade fora do comum, transportes bastante evoluídos e muita, muita empatia.

As mulheres descuravam o uso do hijab com muita frequência. Era normal estar num café e num restaurante e vê-las deixá-lo escorregar propositadamente da cabeça. Era frequente vê-las de calças rasgadas e roupas que seguiam tendências internacionais. Não estava à espera disso também.

As pessoas fazem este país

“Welcome to Iran” é a frase que mais ouvimos enquanto circulamos. As pessoas querem falar connosco, convidam-nos para as suas casas, oferecem-nos tudo o que têm e são de extrema confiança. São um povo muito culto e bastante acolhedor.

Confesso que me senti observada por diversas vezes, especialmente pelo sistema de videovigilância das grandes cidades e pelo olhar atento nas pequenas aldeias. À parte disso, percebe-se que o povo – e falo tanto de mulheres como dos homens – vivem uma vida paralela e oculta ao regime. Fazem tudo o que nós fazemos clandestinamente: bebem álcool, fumam “cenas”, vão a festas no deserto, as mulheres vestem-se de rapaz para ir ver um jogo de futebol, veem canais de produção iraniana fora de fronteiras através de VPNs, etc.

O povo ambiciona liberdade. A consciência do que ela é vem do testemunho das gerações anteriores e também da internet a que acedem com facilidade. Eles querem outra liderança, embora tenham consciência de que uma queda do regime pode significar fragilidade aos olhos dos países vizinhos. Não querem perder a esperança, embora saibam que a luta está longe do fim.

Quando os tumultos acalmarem, visitem sem medos. Conheçam e deixem-se conhecer. Vão encontrar um dos países mais seguros e também dos mais ricos culturalmente. Impossível voltar igual, é uma experiência verdadeiramente transformadora.

Fábio Inácio foi ao Irão como turista e, depois, como líder de viagens em 2014, 2016, 2017, 2018, 2019, 2022. “É um país cheio de arte e história e tem das pessoas mais acolhedoras do mundo”

Fábio Inácio no Irão
Deserto de Kaluts créditos: DR

O que encontrei lá foi o que encontrei por quase todos os locais que passei até hoje: pessoas que querem viver a sua vida tranquilamente de forma livre. A maior diferença para os outros lugares foi a forma de acolher, por experiência própria sou bem recebido pelo mundo inteiro, as pessoas gostam de dar e de ajudar, mas no Irão levam isso a um nível superior e fazem tudo para mostrar que não são terroristas. “Nós não somos terroristas.” “Nós não somos aquilo que vocês (ocidentais) dizem de nós.” Estas e muitas outras frases do género são as que mais oiço cada vez que alguém me dá boleia, me convida para ficar em sua casa ou me oferece o jantar.

Querem ter o direito de escolha e isto vai muito mais além do lenço e da religião

Das coisas que mais adoro fazer em viagem é observar pessoas: ver como vivem; como se movem; como comunicam; etc., e no Irão não é exceção. Às vezes, por lá, vejo mulheres que ficam lindíssimas com o lenço na cabeça, mas logo no mesmo momento sinto que não, porque não é uma escolha pessoal delas e tudo o que é imposto com o objetivo de tirar a liberdade individual não é lindíssimo, nem nada que se pareça. Muitas vezes, sinto-me desconfortável a falar com as minhas amigas e amigos de lá porque para mim a vida é muito fácil. Nasci com tudo e tenho o direito de escolher o que quero dizer e fazer.

Fernanda Cardoso viajou pelo Irão em 2016. “Sabia que era rico em história e património e seguro para uma mulher sozinha”

Fernanda Cardoso em Chiraz
Fernanda Cardoso em Chiraz créditos: DR

Talvez seja o país onde já fui em que mais vezes fui abordada, não para me venderem algo, mas por genuíno interesse em me conhecerem melhor a mim e ao país de onde venho.

Surpreendeu-me, sobretudo, a ingenuidade e a honestidade do povo iraniano. Passo a relatar um episódio que se passou revelador de ambas as coisas: no dia seguinte à minha chegada a Esfahan, apercebi-me que não tinha a carteira, ou seja, a meio da viagem vejo-me sem dinheiro nenhum. A muito custo consigo comunicar com o senhor da receção da pensão onde estava alojada que não falava nada além do farsi, peço-lhe por gestos para ligar o número do Benham, o meu “guia” em Yazd, a quem pedi para ir à agência onde tinha comprado o bilhete do autocarro Yazd/Esfahan, a última vez que me lembro de ver a carteira. Como era sexta-feira (feriado no mundo árabe) não me conseguiu ajudar, só passados dois dias teria notícias. Aproveitei para lhe pedir para explicar ao senhor da receção o que se estava passar. Este que até ao momento não tinha sido nada simpático, de repente, transformou-se no meu melhor amigo, mudou completamente de atitude, até me ofereceu comida. A polícia turística também folgava no fim de semana, embaixada portuguesa idem. Ou seja, vejo-me sozinha e sem um tostão no Irão. Não tinha dinheiro nenhum, nem para pagar o alojamento, nem para comer, nada.

Não sou de desesperar, mas vi a minha vida andar para trás, afundei-me numa cadeira da receção e fiquei lá impotente, já não sei se minutos, se horas… até que me lembrei que ainda tinha o bilhete do autocarro no bolso, completamente indecifrável para mim, mas mostrei-o ao tal senhor que se pôs de imediato a fazer chamadas telefónicas. Fez uma, duas, três, até que à quarta desliga e faz-me um mega sorriso. A minha carteira tinha sido achada no chão do autocarro, o motorista tinha-a guardado! O autocarro, entretanto, já tinha regressado a Yazd, que fica a cerca de 400 km, mas o motorista passado uma hora estaria de novo em Esfahan. O senhor da receção mandou um rapaz que lá trabalhava levar-me lá de motoreta. Isto tudo em farsi. Lá fui eu, cabelos ao vento, pelas ruas de Esfahan até à estação rodoviária e lá estava a minha carteira, intacta, com o equivalente a 800 euros lá dentro. Quis recompensar o senhor do autocarro, recusou. A meio do caminho de volta à pensão, o rapaz parou a mota. Desmontou e fez-me sinal para esperar. Voltou com um saquinho para mim, tinha uma garrafa de água e três rebuçados. Achei a coisa mais ternurenta… quis-me fazer um agrado.

Chegada à pensão, quis recompensar monetariamente tanto o senhor, como o rapaz e recusaram veementemente. Resolvi oferecer-lhes um pacote de doces típicos de Yazd que tinha comprado para oferecer à minha família, foi o único modo que consegui, dinheiro não aceitaram de forma alguma.

Houve algumas situações em que me senti desconfortável

Cada vez que estava sozinha com um iraniano e mais ninguém por perto este incentivava-me a tirar o véu. Nunca o fiz, respondi sempre que no país deles sigo as suas regras. Percebi logo no início da viagem, quando até me assustei com o modo com que me alertaram uma vez que me caiu o véu sem eu dar conta, da sensualidade/sexualidade associada aos cabelos e preferi não o fazer.

Apercebi-me ainda das ideias predefinidas que os iranianos têm em relação ao ocidente, nomeadamente às mulheres ocidentais. Fiquei com a ideia de que acham que por cá a promiscuidade e a depravação são a regra. Contavam-me histórias “picantes”, a meu ver para tentarem perceber até que ponto eu alinhava. Como “desconversei” sempre, acabei por não chegar a saber qual o objetivo da conversa.

Rui Batista Barbosa esteve no Irão em 2016 e 2019. “É um daqueles destinos que só mesmo no privilégio de o experienciar se percebe o encanto e magia que exerce em nós”

Irão
Shrine of Hilal ibn Ali, Kashan créditos: Rui Batista Barbosa

Sabia que os iranianos não eram os terroristas que os americanos (olha quem…) “pintam” e um ou outro viajante (viajante, não turista) falou-me, invariavelmente com intenso brilho no olhar, que não havia povo tão acolhedor. De igual modo, desde a adolescência, nos livros de história, ouvimos falar da incrível civilização/cultura persa. Confirmei tudo isso.

Para mim, as pessoas são, invariavelmente, o maior património de um país. No Irão, são verdadeiramente incríveis no modo como nos acolhem, na simpatia e amabilidade (deveras genuínas) ímpares que nos dirigem. Parecido, só encontrei no Sudão, Colômbia e Iraque, neste caso, pela alegria – e raridade – de encontrarem um estrangeiro a visitar um país marcado por sucessivos conflitos e guerra.

Tudo o que nos apaixona no misterioso e intrigante Médio Oriente está concentrado no Irão: coloridos bazares. Arquitetura deslumbrante. Singular riqueza histórica. Cultura milenar. Gastronomia surpreendente. O envolvente deserto. O encantamento do chamamento do imã. Os desafios às nossas convicções…

Recordo que integrava a mítica Rota da Seda. Já se imaginaram a dormir num caravançarai, no meio do deserto, e ao relento sob uma imensidão de estrelas? Ou participar, todos finais de tarde, em encontros espontâneos de centenas de pessoas a recitar poesia ou cantar sob uma emblemática ponte em Esfahan? Ou estar em Shiraz, no mausoléu do poeta Hafez, e ver quantos choram tocando o seu túmulo enquanto declamam as suas obras? Arrepiante…

A sociedade iraniana está muito mais avançada do que estes valores tradicionais

A ideia generalizada que tenho do Irão é que esse manto religioso não é realmente opressivo. Nas maiores cidades, é usual ver-se cabelo feminino, pois os véus vão ‘afrouxando’ à medida que o dia avança. As próprias mulheres (falo somente das realidades com que me deparei) diziam sentir uma certa folga nesses costumes, acreditando que em breve deixaria de ser obrigatório.

Sobretudo nas cidades, a sociedade iraniana está muito mais avançada do que estes valores tradicionais. As pessoas são extremamente cultas e bem informadas. A esmagadora maioria dos iranianos que conheci são islâmicos moderados e não se identifica com o poder que a religião tem na sociedade, sobretudo na influência que tem sobre o poder político.

O Irão é o mais intenso desafio aos sentidos de qualquer viajante. Já tive o privilégio de explorar mais de 100 países e não encontro outro tão completo e apaixonante.