Com muitas viagens minhas e experiências emotivas que vos quero contar, no entanto tenho sentido uma criatividade diferente que me leva a entrevistar pessoas-viajantes, sejam estrangeiros, sejam portugueses. E desta vez optei pelos grandes viajantes (portugueses). O Miguel Júdice (@migueljudice) sentou-se comigo no seu restaurante, o Geographia e só o restaurante já é, por si só, uma pluralidade de viagens. Um mapa, literalmente.
Antes de entrar, quero partilhar convosco algo que senti. Cheguei mais cedo, antes da hora marcada e, de propósito, parei de frente para a porta do restaurante esverdeado e fiquei a mirar a encruzilhada de quatro ruas antigas de Lisboa. Naquela zona e arredores onde viveram os maiores escritores e figuras de renome. Naquela zona onde rodopiei sobre mim mesma (não me interessa quem viu ou o que achou!), de máscara, e senti um vento estranhamente quente vindo das quatro ruas. Sem dúvida que esta encruzilhada tem algo do passado português que é energia. E não se evita sentir energia como esta.
Passado o momento, entrei com as devidas precauções da COVID-19 e demorei-me a olhar para o mapa antigo que se afigura mal se trespassam os tapetes. Depois procurei o menu digital. Ali encontram os sabores das várias rotas antigas portuguesas e o resultado da nossa ‘miscigenação’: estava encantada e não consegui escolher comida, apenas viagens. Ele explicara que cada prato é, de facto, uma viagem ou uma rota de especiarias. No Geographia há algo muito interessante que começa… no guardanapo. Tem nele estampado um rinoceronte. Foi o meu primeiro foco e a minha primeira pergunta-resposta: este é o rinoceronte famoso que foi oferecido, em 1515, de Goa ao rei Português da altura, certo? Aquele bicharoco enorme que nunca ninguém tinha visto ou ouvido falar e que decidiram colocar na zona do Rossio como se fosse uma atração à solta.
Revejam a história pois é um pequeno marco dos nossos Descobrimentos e vale a pena, implicou um terror ‘sísmico’ pois não se lembraram apenas de testar as habilidades domesticáveis do rinoceronte. Muito mais! Começámos a falar das viagens precisamente do rinoceronte: Goa – Lisboa – Roma. Ele ficou entregue ao papa. Ou era esse o intuito, mas naufragou e o animal órfão não cumpriu a sua viagem exótica. Do guardanapo passei para o meu livrinho de notas e fui desejavelmente intrusiva no Mundo do Júdice. O mote desta semana: que destinos perigosos e curiosos percorreste e porquê?
Recentemente uma das perguntas aos meus seguidores surgiu assim: que destinos lhe/te causam receio conhecer/não visitarias? As respostas foram ao encontro do que eu pensava: Afeganistão, Iraque, Líbano, Venezuela, Kosovo, Quirguistão, etc. E precisamente um grande viajante não tem receio, aliás tem a curiosidade apurada para atravessar montanhas e lugares recônditos como é o caso do Júdice! Viajante que já conta com oitenta países no bolso de histórias, diz-me que viajar para tais países tem duas motivações: o exotismo e a dinâmica desconhecida (por muitos) das populações que vivem afastadas de tudo e com a pele curtida pelas memórias de uma guerra que não pediram. No exotismo, lembrou-se de Bangladesh, do Tibete, da Guiné-Bissau. Mas eu persisti no perigo dos destinos (que a mim tanto cativa!), sobretudo nesta altura em que o maior perigo já não está nos destinos longínquos, mas na COVID-19 ao virar da esquina.
Focámos os países onde os conflitos bélicos são constantes como o Afeganistão. Mesmo que pareçam ter terminado. O Miguel, com um grupo de amigos, passou a zona fronteiriça repleta de militares Talibãs que lhes abriram o portão para poder passar para a zona democrática afegã. Sim, o portão! E vai a pé, não pense que vai de autocarro com um guia de guarda-chuva em punho para nenhum turista do grupo se perder. Nem estrada ali tem. Neste caso, os corajosos viajantes atravessaram a tensão (sentiram-na, forte!) e a fronteira sem problema e foram ao que tinham planeado no mapa: Montanhas Pamir. O que este grande viajante procura é a interação com as pessoas, com os locais remotos e com os mercados e mercadores. Nesses locais, em Pamir, encontrou muita pobreza, zero saneamento básico e o asfalto não existe. As suas pegadas continuaram como se fosse realmente um outro mundo: ou um anterior ao nosso, ou um destruído pelo nosso. Acredito mais na última opção. Ele ficou num alojamento local (o único existente) e ali algo lhe despertou a atenção.
Uma pedra com escritos árabes estava ao alto, algures na casa desse alojamento local. Ele perguntou ao afável hospitaleiro do que se tratava. Ora a resposta doeu, mais uma viagem dos sentidos: não era uma mera pedra fria, mas sim uma lápide. O senhor está à espera do corpo igualmente frio do filho, com uma paciência santa até que os Talibãs lho devolvam após a guerra que já quase ou tudo lhe levara. Assim se vive ali, mas por outro lado os mercados são tão coloridos e os véus são lindíssimos. Terra de contrastes áridos. Ainda estou presa na história da ‘pedra’ que poderia estar resguardada, mas não. Estava ali à vista algo tão atroz como a humanidade de uma espera na qual a esperança já teve o seu ponto final. Dá que pensar neste tipo de experiências e de vidas, não dá? Do Afeganistão passamos para o Quirguistão, uma das suas recentes viagens (antes da COVID-19).
Ali sente-se o peso soviético, a Rússia Antiga permanece. Mas este povo Mongol é extremamente simpático e exótico. É um destino que vale a pena visitar e sem perigos. Tem algo que chama extremamente a atenção: numa das cidades encontrará um dos pontos da antiquíssima rota da seda. Os mercadores mantêm o mesmo modus operandi, tudo emana um poder maravilhoso para visitantes aventureiros e que querem conhecer mais sobre a História do Mundo. Daqui saltamos para o Líbano, como se o mapa parecesse pequeno. Nisto dou uma mirada no mapa do restaurante, volto aqui a Lisboa. Percebo como o Miguel e mesmo eu temos a sorte de podermos viajar tanto, mas sobretudo com um propósito. Não se trata de enriquecer a galeria de fotografias ou de exibicionismo. Viajar é viver muitas vidas. Volto ao Líbano e descubro que o Júdice esteve antes e depois da guerra naquele país dividido entre cristãos e muçulmanos que nunca se vão entender. A guerra mantém-se como um murmúrio e até para os guias turísticos há ‘conflito’. O guia muçulmano só pode ir até à fronteira cristã e vice-versa. E, assim, vão-se respeitando e atravessando uma linha onde antes só se viam escombros e uma terra de ninguém.
Depois da guerra, a terra de ninguém mudou embora todos se tenham habituado ao triste cenário de conflito. Beirute (quero imenso lá ir!) é misterioso e respeita o turista sábio. Numa outra viagem do Júdice, numa zona a norte da Índia (Ladaque), pertíssimo do Tibete, ele emocionou-me com as suas caminhadas contadas por mosteiros tibetanos onde o budismo é puro, a energia é absoluta. Foi em Março, plena altura pandémica e era o único turista, o único português. O que o encantou, além da serenidade dos monges, foi a beleza das montanhas.
E por falar em mosteiros, saltámos até ao Kosovo onde também visitou um mosteiro mas puramente cristão ortodoxo. No Kosovo os laivos de guerra mantêm o cheiro a perigo havido e sobretudo a memória de um genocídio recente. Um verdadeiro holocausto. O povo é harmonioso, mas desconfiado pois têm gravadas (como na lápide que acima recordava o nosso viajante) as memórias martirizantes da guerra, sobretudo a limpeza étnica que sofreram. Enquanto conversava com os militares da ONU que protegem aquele mosteiro que é Património da Humanidade, o Júdice percebeu como vivem os padres (não saem do Mosteiro) e como sobreviveu aquele símbolo graças à ONU. Os militares contaram o terror das bombas que tinham como objetivo destruir o mosteiro e como a ONU tem de estar 24 horas ali pois este é um dos lugares em que não importam santos, nem pecadores: o Mosteiro Cristão tem de se manter pois é de todos, do mundo.
Imaginem que tínhamos artilharia e medo montados à porta do Mosteiro dos Jerónimos e com a constante ameaça de ser destruído apesar da força da ONU? Pois.
Já íamos finalizando o belíssimo jantar de bons sabores portugueses quando o Miguel me respondeu à ultima pergunta sobre o país mais perigoso e mais bonito onde esteve: Venezuela. Descreveu-ma de uma forma que me remeteu a memória para a Costa Rica. Pensei que o perigo é realmente de santos e pecadores, mas nem isso impedirá os viajantes de deixarem a sua pegada.
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