Plano do dia: praia. Temos duas praias à escola, a praia Cua Dai e a Bai Tam, demos à bicicleta um caminho por entre ruelas, fora da estrada principal e aí vemos uma placa de madeira que diz assim: “go to the beach, this way please”.
E fomos. Estacionamos as bicicletas – estacionem connosco -, passamos por essa casa em ruínas e descemos as dunas, lá em baixo esperam-nos três mulheres, dentro dos seus chapéus cónicos, lutam por nós, para ver qual delas nos ganha, em guardassóis e espreguiçadeiras, é assim que ganham os dias. Eram todos iguais, todos protegeriam a Mia do sol, durante a sua soneca da tarde, mas tínhamos de escolher um. Escolhemos pela simpatia. Percorremos as dunas com os mesmos cabelos enrolados em lenços. Iguais. Há tanto de mim nela e tanto de mim é para ela. Sentamo-nos e jogamos ao sério, ela ganha-me, ele ganha-me: eu ganho nos sorrisos, perco no jogo.
Parámos para almoçar. O calor pede um chá gelado. Vamos ao Baby Mustard, dois chás verdes com limão e um chá de menta com mel para a menina mundo, que está crescida e já partilha um chá com os papázitos (como nos chama).
Aqui, as ervas - para as bebidas ou comida - são colhidas na hora, pelas mãos da cozinheira, na horta que fica aberta aos clientes. E nós fomos ver colher cada erva e o cheiro a hortelã e menta encheu-nos as narinas. Encontrámos o Baby Mustard por um feliz acaso, por entre os nossos passeios de bicicleta, vimos a placa do restaurante, seguimos o caminho do rio, passámos por essa árvore que pinta o chão de flores rosa garrido e branco neve e lá está ele. Estacionem as bicicletas junto às nossas.
Sai uma tradicional cavala grelhada em folha de bananeira. O palato foi de tal modo conquistado que voltamos lá, vez após vez, sentamo-nos nas mesmas cadeiras, na mesma mesa, nos mesmos lugares e esta sala aberta, suspensa por paus de bambu, foi quase a nossa sala lá de casa, no tempo que vivemos em Hôi An – acreditem, toda a ementa é um regalo.
Voltámos à praia, todos temos uma actividade bem definida à nossa espera: a Mia tem a sesta que a espera, eu tenho o meu caderno de notas pronto para acolher mais histórias, entre os sarrabiscos que a Mia lhe vai fazendo, e ele a máquina em riste, para vos contar (em imagens) a história desses pescadores de barcos redondos.
Regressámos pelo mesmo caminho, pelos mesmos campos de arroz, estamos de novo com os pés nos pedais. Passeamo-nos lado a lado com as vacas. Ela habituou-se a vê-las como aos cães ou gatos, todos compõem as paisagens que temos acarinhado. Mas neste dia cruzamo-nos, pela primeira vez, com um búfalo, um búfalo de água, o búfalo a quem ela quis oferecer uma flor.
Na cidade velha
Depois de uns dias, entre praia, natureza e passeios de bicicleta, fomos conhecer a cidade velha. Venham daí, peguem de novo nas bicicletas, eu disse que estávamos a 10 minutos de tudo.
Hôi An conta o seu passado pelas ruas. Em pontes, monumentos e edifícios percebemos que essa calçada – que agora percorremos a seis pés – já foi chão de pés que traziam pessoas de outros lugares, de outros mundos, de outras línguas, sobretudos Chineses e Japoneses: a ponte Chùa cau é um belo exemplo da herança do Japão e um ponto de passagem obrigatória para quem a visita.
Hôi An foi, outrora, o maior porto do sudeste asiático, na altura conhecida como Lâm Ấp Pho. Primeiro as especiarias, depois a cerâmica, passavam durante séculos, entre as mãos dos mercantes, ao longo do estuário do Rio Thu Bon, sendo no séc. XVIII considerado, pelos comerciantes chineses e japoneses, como o melhor destino no sudeste asiático para trocas e comércio. Depois deu-se a revolução Tây Son e a queda da governação de Nguyen, as trocas comerciais deixaram de se dar entre estrangeiros e passaram a ser monopólio dos franceses, que as deslocaram para Dà Nang. Hôi An tornou-se porto esquecido, guardando-se assim, igual a si mesmo, resguardando-se e preservando-se das mudanças sofridas pelo país. O seu perfeito estado de conservação valeu-lhe, em 1999, o estatuto de Património Mundial da Unesco.
E nós navegámos esse rio, num barco a remos, remado pelos braços de uma senhora, a luz do sol fazia connosco a descida e ela deliciava-se com os barcos – grandes e pequenos –, com as pessoas dentro deles e tudo o que ia descobrindo pelas margens, enquanto nós nos deixávamos encantar pela luz do sol que entrava nela e ficava guardada: pelos cabelos, pelos olhos, pelo rosto, pelo sorriso.
E nesse rio, nesse dia, falámos assim, mãe e filha:
– Melhores amigas?
– Meores amigas. – Responde num sorriso.
– Para sempre?
– Paia sempe.
– Prometes?
– Pometessss
Foi nesse rio, nesse barco, nesse dia que, pela primeira vez, nos imaginei melhores amigas. Esta promessa mora ali, no rio Thu Bon, no centro do Vietname. E eu sei que sempre que nos sentir melhores amigas, quando ela continuar a ser menina-pequena, quando ela já for menina-adolescente e quando ela já for menina-mulher adulta, eu vou lembrar este barco, este rio, esta conversa, esta viagem.
Nesse mesmo dia, como todos os dias, chegaria a noite, mas seria noite de lua-cheia e do tão esperado festival de lanternas, e este rio, como as suas margens, como os nossos rostos, seria apenas iluminado pela luz da lua, pelas luzes das velas, como aqui vos contámos.
Começou a chover, é a nossa primeira chuva tropical. Não fugimos, abrimos as bocas e engolimos o que o céu nos dá. Chuva quente. A chuva abrandou, voltámos às bicicletas, conhecemos algumas das casas desses homens do mar e fomos ao mercado, o mesmo onde esses homens levam o seu peixe, o que pescaram de noite, para as mães venderem, para as mulheres venderem. Percorremos o mercado nessa hora onde o dia começa a perder para a noite. As cores vivas: dos frutos, dos legumes, da carne; o reluzir dos peixes, tudo vai ficando escuro, mas as mulheres trocam os chapéus cónicos pelas lanternas e lâmpadas improvisadas, que iluminam tudo outra vez. Mesmo ao lado dos frutos, dos legumes, da carne, dos peixes, passam os pés, passam as motas, passamos nós, passa-se – aqui – Hôi An.
Outro dia de sol, há um café que se chama Mia e um dos lados da beira-rio que ainda não descobrimos. Entre descobertas enchemos a barriga de amêijoas: vietnamitas, cozinhadas por uma vietnamita, comidas num restaurante cheio de vietnamitas, comidas por duas bocas bem portuguesas.
Pousamos as bicicletas, amanhã não haverá passeio com pés nos pedais, levantaremos voo para o nosso último destino no Vietname: Ho Chi Minh (a antiga Saigão). Encontramo-nos por lá (aqui).
Este artigo foi originalmente publicado em Menina Mundo.
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