Assistir aos jogos do Mundial com as luzes da árvore de Natal a piscar, a Mariah Carey na cabeça e agasalhados até aos dentes, pode parecer exótico, mas está a acontecer.
O Mundial 2022 no Qatar está a decorrer no inverno do hemisfério norte, uma vez que no verão, no Médio Oriente, as temperaturas são acima dos 40 graus e isso impossibilitaria a competição.
O corpo em repouso tem uma temperatura que ronda os 36/37 graus e durante o exercício físico aumenta para cerca de 38,5. Se expuséssemos um atleta a um calor excessivo, isso faria com que a temperatura corporal aumentasse podendo trazer grandes problemas de saúde. “Nós temos sistemas de regulação própria, que como todos os sistemas têm um limite, e quando esses limites são ultrapassados existem reflexos no nosso corpo como o aumento da frequência cardíaca, da circulação sanguínea da sudação, que leva à desidratação, além de outras complicações”, explica Abílio Antunes, coordenador clínico da consulta do viajante no Instituto de Higiene e Medicina Tropical em Lisboa.
O especialista trabalha nesta área há mais de trinta anos, conhece as reações do corpo e os perigos que este enfrenta - como ninguém. “É uma máquina maravilhosa com sistemas de regulação muitíssimo bons”, diz.
“Dói a respirar e assoar-me fazia sangue. Uma coisa inexplicável”
Viajar pode ser sempre um novo desafio, mesmo para quem conte já com muitos quilómetros na mochila e muitas viagens nas costas, como é o caso de Carla Henriques, líder de viagens da empresa Papa-Léguas. “Uma pessoa é sempre apanhada na curva”, brinca. Carla referia-se à viagem de barco que tinha acabado de fazer antes de falar connosco. “Estou em Punta Arenas (no Chile) e fui ver os pinguins de Magalhães. Ainda não me tinham acontecido destas, mas eu vomitei a alma naquele barco”, diz justificando o facto de o corpo reagir sempre de diversas formas.
Carla trocou, em 2015, a sua profissão de engenheira ambiental, numa multinacional, para liderar viagens. Já passou por todos os cenários e mais alguns, desde o clima árido do deserto do Sahara, ou da Jordânia, até aos climas característicos de grandes altitudes como o monte Toubkal, em Marrocos, ou o deserto do Atacama, no Chile. “É o deserto mais seco do mundo, sente-se logo tudo muito seco na garganta e no nariz. Dói a respirar e ao assoar-me fazia sangue. Uma coisa inexplicável”, conta. Mas a ciência explica: em climas muito secos e em que a humidade do ar é reduzida, a mucosa nasal seca afetando os mecanismos de defesa das vias respiratórias, provocando assim um “agravamento de alergias e alterações na parte respiratória, sobretudo em pessoas com condições pré-existentes”, esclarece Abílio Antunes.
Se for viajar para um destes sítios, é necessária a ingestão de muita água para manter os níveis de hidratação estáveis, o uso de soro fisiológico e hidratantes para a mucosa nasal.
“Mal de altitude”: o corpo a sofrer no topo das montanhas
Além do clima árido do deserto do Atacama, no Chile, também a altitude é um desafio para quem está habituado a viver ao nível do mar, uma vez que este deserto fica a cerca de 4000 mil metros. Normalmente, os roteiros turísticos começam em San Pedro a cerca de 2400 metros. “As pessoas começam logo aqui com dores de cabeça, têm pequenos episódios de taquicardias, sentem-se muito mais cansadas a caminhar, mais ofegantes e com falta de ar. Também há enjoos, é como se o estômago apertasse”, descreve Carla. Estes são alguns dos sintomas do “mal da altitude” ou “mal da montanha”.
À medida que a altitude aumenta, a pressão atmosférica diminui e isto leva também a uma diminuição do oxigénio que nos é disponibilizado. É normal, por isso, sentirmos que nos falta o ar ou que o que respiramos não nos é suficiente. “Para dar resposta a esta baixa de pressão, os nossos sistemas de compensação fazem aumentar a ventilação por minuto”, explica o médico. Daí a sensação de respiração ofegante. Além disso, o fluxo sanguíneo cerebral aumenta, à medida que se vai subindo, o que origina dores de cabeça e há ainda uma alteração da frequência cardíaca: o coração tenta compensar batendo com mais frequência”, esclarece.
Abílio Antunes, habituado a aconselhar o viajante, explica ainda que a cada 1000 metros que subimos, o oxigénio reduz-se em cerca de 10%. “Isto começa logo a ter início por volta dos 1500 metros”, acrescenta.
Quem viaja tem de ir informado e Artur Pegas, cofundador da Papa-Léguas e apaixonado por turismo de montanha, sabe-o melhor do que ninguém. “Das duas uma: ou estamos informados acerca do tema e sabemos que é um processo normal, natural, até determinado momento e isso tranquiliza-nos e é uma coisa que passa com o tempo e o corpo adapta-se; ou, quando não temos informação sobre isso, facilmente entramos em pânico, porque não sabemos o que está a acontecer”, remata.
Artur tem 51 anos e uma vida de viagens. Já há mais de vinte anos que percorre montanhas “pelo simples prazer de andar”. O trekking não era uma modalidade muito falada em Portugal e foi, também por isso, que fundou com um colega há 25 anos a agência.
O ponto mais alto onde esteve foi no Monte Elbrus, na Rússia, a 5642 metros. Contudo das primeiras viagens que fez, em altitude, foi ao Peru, onde se situa uma das cidades mais altas do mundo – Cusco, a 3400 metros. Também Artur sentiu dores de cabeça, palpitações cardíacas e algumas náuseas, contudo não se assustou. “ É normal, o corpo a dizer ‘atenção, estás num ambiente que é diferente daquele onde tu habitualmente vives’”, explica.
Nestas viagens, o líder costuma andar com um oxímetro (um aparelho que mede a percentagem do oxigénio) e vai avaliando os sintomas e valores do grupo. “Se as coisas forem agravando, temos de descer: não há hipótese”, diz Carla Henriques.
Na correria normal das viagens, o corpo precisa de tempo
Artur relembra que o corpo “precisa de tempo para se adaptar”. A esse tempo, a linguagem científica chama de “aclimatação", que não é mais do que dormir nos diferentes patamares de altitude. “Quando vamos para uma altitude muito grande devemos pernoitar, um dia ou dois dias, isto porque a subida deve ser feita por uma espécie de degraus”, corrobora o especialista em consulta do viajante.
Nem sempre é fácil para os viajantes, com pouco tempo, estas paragens para pernoitar e por isso os fármacos ajudam. “Por exemplo, as pessoas que vão para o Peru e que querem visitar o Machu Picchu, muitas vezes não têm muito tempo para fazerem a aclimatação, vão rapidamente da capital Lima para grandes altitudes e aí socorremo-nos de um fármaco, a substância ativa é a acetazolamida, e que vai permitir um melhor aporte de oxigênio ao território nobre que é o nosso cérebro”, diz o médico.
“Fui resgatado de helicóptero nos Alpes por causa de uma dor de dentes”
Podia ser o título digno de qualquer jornal sensacionalista ou até um segredo de reality show, mas Artur Pegas apressa-se a contar que o episódio não foi tão dramático como parece. “Foi numa das três tentativas de subir ao Monte Branco (a montanha mais alta dos Alpes e União Europeia) que senti uma dor de dentes incrível”. Quando chegou ao penúltimo refúgio antes do cume, a cerca de 4000 metros, encontrou um montanhista espanhol que estava à espera de um helicóptero por causa de um problema de costas. “As dores eram tão fortes que perguntei se havia lugar para mais um. Claro que quando cheguei cá abaixo, tomei um comprimido para a dor de dentes e, como baixei a altitude, ficou tudo bem”, conclui.
Artur não sabia, mas tinha uma infiltração no dente causada por uma restauração, que tinha feito há muitos anos, e a alteração da pressão do ar no interior do dente gera dor. Há relatos de viajantes que sentem esta dor ainda no avião, à qual a medicina dentária já deu o nome de “barondontalgia”, contudo isto só acontece quando existem problemas à priori.
O médico da consulta do viajante também nos chama a atenção para outros cenários que envolvem altitudes e, por isso, tem de constar no inquérito clínico. “Uma pessoa que vá ao dentista e faça uma obturação de um dente, não está recomendada a viajar de avião nas 24/48 horas seguintes; tal como uma pessoa que faça alguns exames radiológicos, isto porque, com a subida de altitude há uma diminuição da pressão e os gases, que se injetaram em ambos os procedimentos médicos expandem-se, fazem compressão nas extremidades nervosas e causa a dor.”
Muitos viajantes também aproveitam alguns destinos internacionais para a prática de mergulho, em destinos onde o fundo do mar é uma tela natural. Contudo, também há precauções a ter. “Aconselhamos às pessoas que façam mergulho de garrafa que evitem viajar de avião nas primeiras 24/48 horas, porque os aviões comerciais estão pressurizados a uma altitude correspondente 2200 metros e se a pessoa faz o mergulho e no próprio dia vai-se meter num avião, pode ter consequências graves, porque não houve uma adaptação do corpo às diferentes pressões”, esclarece o médico especialista.
“Em viagem é impossível controlar tudo”
Já se percebeu que planear uma viagem, exige muito mais do que arranjar espaço na mala, consultar os horários dos transportes ou encaixar monumentos, parques, praças e restaurantes em tabelas de Excel. Planear uma viagem deve contemplar também os desafios do nosso corpo e, para muitas pessoas, os desarranjos intestinais fazem parte das histórias de viagens. “Não há viagem nenhuma que faça onde não tenha alguns dias de ‘desarranjo’, por muito cuidado que vá tendo, acaba por ser impossível controlar tudo”, conta Artur Cabral, fotógrafo e guia de viagens, especialmente em safaris.
A prevenção das diarreias é também um dos temas abordados na consulta do viajante. “A maioria destes episódios de diarreia está diretamente relacionada com a qualidade da água, principalmente em países onde a rede pública é muito pobre, como a maioria dos países africanos e alguns do sudoeste asiático”, esclarece o médico.
O fotógrafo cresceu a ouvir histórias de África e o primeiro safari que fez, aos 16 anos, foi ao Kruger Parque. Mais tarde, abandonou a profissão de arquiteto para abraçar a de fotógrafo profissional e líder de viagens. As savanas africanas são a sua segunda casa, mas, apesar da paixão por estes cenários, reconhece que nem sempre o corpo sai bem tratado. “Começamos uma viagem com todos os cuidados, mas às tantas acabamos por pedir uma bebida com gelo para combater o calor ou mesmo um simples sumo natural que pode ter água não filtrada”, conta.
Também se aconselha a não se comer alimentos crus, ou com casca que possam ter sido lavados com água da torneira, e que a lavagem dos dentes seja com água engarrafada, porque mesmo que não haja ingestão de água, “basta o simples contacto da água com a mucosa (oral) para ocasionar uma diarreia”, realça Abílio Antunes.
Conselhos nunca são demais
Além do clima, dos problemas de altitude ou saneamento, também a exposição a novos agentes transmissores de doenças pode pôr em risco a saúde do viajante. É nesta área que o Instituto de Higiene e Medicina Tropical mais atua. “Trabalhamos muito as doenças transmitidas por vetores, neste caso por mosquito. A malária será a principal preocupação e depois vêm a Dengue, a Zika, a Chikungunya e, quando se viaja para o Sudeste Asiático, a encefalite japonesa”, enumera o coordenador clínico, relembrando que há vacinas para muitas doenças que não existem nos países de origem.
É por isso importante a quem viaja conhecer os riscos e, se aplicável, “levar as vacinas recomendadas para doenças” que não existem no seu país de origem como explica Abílio Antunes.
Curiosamente, na Europa também existem zonas em que ainda prevalece a doença da carraça, mas que a maioria desconhece. “Pessoas que viajam na Europa, para meios rurais na Suíça, Áustria, Alemanha – na zona da Baviera – estão muito suscetíveis a apanhar a febre da carraça e existe uma vacina para isso, mas as pessoas que viajam na Europa não se preocupam em vir à consulta da medicina do viajante”, lamenta Abílio Antunes.
Carla concorda, mas relembra que a destreza física e o bem-estar mental são fatores muito importantes. “Eu acho que o corpo aguenta até onde a nossa mente também nos der a força. Se começarmos logo a entrar em pânico, é claro que o corpo vai entrar mais em stress e não é isso que queremos”, diz.
Tomar uma atitude preventiva e informar-se sobre todas as precauções a ter nas viagens ajudará a minimizar os riscos e ainda assim, face a todos os desafios, viajar será, sempre, o melhor remédio.
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