Bilhete-postal enviado por Ana Gomes

Estão aninhados entre as mercadorias das lojas, a vasculhar os montes de lixo das ruelas, pousados sobre os restos de madeira das obras, a dormir tranquilamente sobre as cadeiras das esplanadas. Põem-se a postos, numa atitude de agitação aflita, à espera de um momento em que possam atravessar o metro e meio que separa um lado e o outro do souk, por entre as bicicletas, as motoretas, as carretas, os burros, os lojistas e os turistas que se cruzam a cada instante, no milagre permanente de não haver atropelamentos nem esmagamentos.

Se pararmos neste instante, encostados a uma qualquer montra ou esquina, vamos vê-los: o grande gato preto e branco que tem autorização para dormir na loja em cima de um tapete fofo; o gato preto zarolho, sentado educada e pacientemente à frente do peixeiro; o gato branco de cauda farfalhuda que em dois saltos desaparece por cima de um muro velho; o gatinho bebé, pele e osso, com a cabeça a pender de sono, que parece ir morrer de fome e frio a todo o momento; o gato cinzento, comprido, bem arrumado entre os utensílios de cozinha numa prateleira de um café ou restaurante; e o rei de todos eles, o gato tricolor, tartaruga, que percorre metodicamente as esplanadas, roçando-se nas pernas das mesas, miando com o enfado de um pedinte profissional, e que acabará deitado na almofada de uma das cadeiras depois de roer um pedaço de pão de algum cliente a quem o dia correu bem. Os empregados hão-de vir limpar as mesas; vão vê-lo enquanto recolhem os copos e passam um pano húmido e cinzento pelo tampo. Podem até sacudir as almofadas - mas nunca lhes ocorrerá expulsar o gato para sacudirem a almofada que ele ocupou.

Esta relação com os gatos intriga-me. Ninguém lhes liga muito, mas são mais tolerados do que em Portugal; em zonas mais rurais que visitei, os gatos, sempre ariscos, entram sorrateiros nas salas; os mais atrevidos tentam esconder-se debaixo das mesas, mas são expulsos rapidamente. Têm, como os da cidade, um ar meio sujo, grandes cicatrizes, ninhadas que aparecem e se dispersam. Imagino que os tolerem por causa dos ratos, mas sem nada da relação afectiva (seja de amor ou ódio) que nós, europeus, temos com estes animais. Deixam-nos andar. Os mistérios do gato parecem dizer-lhes muito pouco.

Nas cidades, mais uma vez Marraquexe, parece haver o mesmo desprendimento. Mas são tolerados ao ponto de, como disse, não ocorrer a ninguém expulsar o gato que dorme na almofada do café. Em Essaouira, vi uma família conferenciar ao ver que a mesa para onde se dirigiam tinha três das quatro cadeiras ocupadas por gatos (mais quatro a dormir no chão, à sombra), acabando por optar por ir para outra mesa.

No entanto, já apanhei pessoas em flagrante, a fazerem festas a gatos. Um rapaz, no bairro de Massira, agachado ao pé de uma árvore a esfregar com o pé a barriga de um gato distraído e deliciado. Olhou para mim (o rapaz) e fez um sorriso quase embaraçado. Um homem a fazer festas pesadas na cabeça de um gato, numa loja. Uma mulher a estender o braço a medo para acariciar um bichano. E eu a matar saudades sempre que apanhava um mais confiante, ou a deixar que se aninhasse na bainha da minha saia um gatinho bebé muito sabido que vivia em casa de uma família amiga.