Texto por Miguel Frazão
Sou uma pessoa de impulsos. Talvez por isso seja uma pessoa de arrependimentos. Neste caso, não. Estava de férias. Sem as pequenas preocupações diárias, a minha inquietude trata de as arranjar. Não me apetecia ver um filme, é uma atividade parada. Não queria escrever, obrigava-me a pensar. Decidi que estava na hora de tratar da carta de condução. Ocupei algum do meu tempo a organizar papéis e documentos. Dirigi-me até à escola que mais me aconselharam. Estava fechada. Terça-feira de Carnaval.
Menos de um ano depois já tinha a carta provisória na mão, que ainda tremia, tal era a tensão a que o meu corpo fora sujeito nos minutos anteriores. Diz-se que somos aquilo que comemos, mas a forma como conduzimos também diz muito sobre nós. Na velocidade estou dentro dos limites. Os piscas estão lá sempre e o cinto de segurança também. Não me indigno com os erros dos outros porque não gosto de os ver indignados comigo. Conduzo no meu canto. Fora uma ou outra situação em que me meto onde não sou chamado. Nunca buzinei. Por receio dos insultos ou receio de estar a fazê-lo sem justificação. Quer dizer, agora já posso dizer que buzinei. Num carro que não era meu, em que o condutor não era eu e num país que não era o meu. É tudo uma questão de responsabilidades.
Estava no Egito, o país eternamente conhecido pelos faraós e as pirâmides. O cenário amarelado era efetivamente real. As Pirâmides de Gizé lá estavam. Todas alinhadas com a constelação Órion: a de Quéops, Quéfren e Miquerinos. Pai, filho e neto. Foram construídas há cerca de 5000 anos. Não por escravos, mas por trabalhadores que eram pagos através de comida, cerveja e tratamento médico. A Esfinge também lá estava. Sem o nariz, claro. O Nilo estava sujo. Ao redor, homens e mulheres tinham o corpo coberto com roupa de cima a baixo. Os seus trabalhos são duplamente cansativos. Cada cliente é uma luta e, na hora de prestar o serviço, a energia está já reduzida a metade. Os fotógrafos de rua convenciam os turistas de que mereciam registar a sua passagem por ali, os vendedores forçavam-nos a entrar nas lojas e os taxistas tentavam negociar viagens a troco de pequenas quantias que para eles faziam toda a diferença.
É um táxi que me transporta até grande parte daquilo que sei hoje sobre o Egito. Saio do hotel onde estava hospedado, no Cairo, com o centro da cidade como destino final. O código da estrada é o resultado do bom senso. Os peões atravessam devagar para que todos os veículos se possam desviar a tempo. A buzina é a forma de comunicação mais eficaz. Entro num táxi cujo motorista concordou com o preço proposto. No “lugar do morto”, aprecio a perícia com que a viatura é conduzida. De um lado e do outro veem-se edifícios parcialmente construídos. O taxista recorre à buzina com frequência. Também queria carregar no botão. O meu inglês não foi suficiente. A língua gestual produziu outro efeito. Assentiu com um sorriso. Buzinei uma e outra vez, às quais se seguiram outras tantas. Era apenas mais uma pessoa a buzinar ali. Senti um alívio. Não havia reações no exterior. A vida daquelas pessoas permanecia agitada. Tenho de repetir a experiência em Portugal, pensei.
Aterrei em Lisboa, apanhei as malas e saí do aeroporto. Entretanto fui de férias. Já regressei e já peguei umas quantas vezes no carro. Ainda não foi desta que buzinei.
O Miguel estuda jornalismo, dedica-se à esgrima e nos tempos livres escreve no seu blog, Ponto de Fuga, onde este texto foi originalmente publicado.
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