A Terceira fez-me viajar pela origem de tudo. A começar pelos nomes. Para quem gosta de viajar pelas palavras, como eu, a Terceira é uma delícia, tal como o doce de vinagre, cujo nome despertou logo curiosidade*. “Aqui nos Açores, gostamos de simplificar os nomes”, disse-nos um dos monitores do Centro de Interpretação da Serra de Santa Bárbara. A começar pelo nome da própria ilha que, quando foi descoberta (a terceira do arquipélago dos Açores a ser povoada em 1450), ganhou o nome de Ilha de Nosso Senhor Jesus Cristo das Terceiras. Restou apenas Terceira, e ainda bem.
Há muitos nomes religiosos e de santos, como em todo Portugal, mas com as particularidades de uma ilha que sofreu à mercê dos fenómenos naturais (que durante muitos anos foram interpretados e nomeados como mensagens divinas). É o caso da Procissão dos Abalos, que se realiza a 31 de maio, desde que uma série de sismos afetou a ilha devido à erupção de um vulcão submarino.
Há outros nomes que me fizeram sorrir. Como os Mistérios Negros. Sob o olhar da ciência, é um fenómeno geológico composto por lavas traquíticas, formado na última erupção histórica da ilha em 1761. Ali, naquele dia de brumas e ventanias, ao passar por estes montes de lava que contrastavam com o verde da paisagem, eles pareciam ainda mais negros e misteriosos. Sob o olhar de quem lhe deu o nome, sem uma explicação científica para a sua origem, é impossível negar que aquela paisagem provoca estranheza e destoa do resto. Que mistérios guardavam aquelas rochas negras?
As mesmas rochas que os navegadores compararam com os biscoitos duros e resistentes que levavam nas viagens marítimas, julgando até que aquele povo estava louco a cultivar em cima de farinha remexida. Biscoitos. Assim nascia o nome de uma freguesia onde as vinhas se plantam entre o basalto que criou, junto ao mar, um labirinto de piscinais naturais. Naquele dia de tempestade, o mar galgava as rochas sem piedade, mostrando a sua essência indomável, enquanto desejávamos um dia de sol e calmaria para enxergar a vertigem azul daquelas águas. Mergulhar, quem sabe.
Por mais que a ciência explique tudo e mais alguma coisa, o mistério da Natureza permanece e surpreende-nos sempre. Como quando descemos as escadas do Algar do Carvão e parece que estamos a entrar num mundo jurássico, rodeados por aquele fantástico jardim vertical que encontrou terreno fértil nas paredes da chaminé vulcânica. Por capricho ou casualidade, a Natureza deixou ali aquela entrada para as suas entranhas, onde podemos ainda ver uma lagoa e duas grandes cúpulas, uma delas, apelidada de catedral. Sim, aos olhos de quem lhe deu o nome, aquela gruta vulcânica foi considerada um templo. Independentemente do credo, é verdade que estamos num lugar sagrado. Sente-se no invisível, ouve-se no som das gotas de água.
Assim, o homem molda a Natureza ou, pelo menos, tenta. À sua medida e aos seus objetivos. Criando, por vezes, cenários de sonho, como a manta de retalhos que ocupa grande parte da ilha e que pode ser contemplada de forma sublime da Serra do Cume ou da Serra da Ribeirinha. Os muros de basalto, pedra sobre pedra, e o verde intenso das pastagens. “Vacas felizes, com vista para o mar e que não pagam renda”, disse-nos, a sorrir, o nosso guia.
Mais acima, nas serras, ainda se conserva a antiquíssima floresta Laurissilva que, nos Açores, Madeira e Canárias, ficou protegida de alterações que a extinguiram no continente. Por estar acima dos 500 metros de altitude, nos Açores, deu-se o nome de Floresta de Nuvens. Quando se começa a entrar neste mundo de plantas que guardam a água, tons de verde sem fim e nevoeiros que aparecem de repente, percebe-se o motivo do nome.
Só depois é que penso nisso. Naquele momento, os olhos agarram-se à paisagem sem pensar muito nas palavras, como o musgo se agarra aos troncos das altas criptomérias, tentando, talvez, chegar ao topo. Do topo, avista-se o mar, de certeza, afinal, estamos numa ilha e ele está sempre ali para nos lembrar da origem de tudo. E do mistério também.
Veja aqui o roteiro de três dias na ilha Terceira
*Se ficaram curiosos ou desconhecem esta sobremesa, o doce de vinagre é feito com leite, ovos e açúcar, o vinagre é utilizado numa pequena quantidade apenas para coalhar o leite, dando uma textura interessante ao doce.
Comentários