Quando atravessamos a Ponte de Mosteirô, deixámos para trás o distrito do Porto e, do outro lado do Douro, Viseu nos espera. Percorremos a Estrada Nacional 222, considerada a melhor estrada do mundo para conduzir e, podemos afirmar, uma das mais bonitas. Fazemos apenas 10 quilómetros, ao longo desta estrada que se estende por mais de 200, mas é o suficiente para termos uma amostra agradável do “excesso de natureza” de que Miguel Torga falava nos seus diários. Temos o rio Douro sempre como companhia, até chegarmos a Caldas de Aregos.
Na parte mais baixa do concelho de Resende, encontramos a estância termal procurada desde o século XII, pelo valor ímpar das suas águas. Situado junto ao rio Douro, o atual balneário Rainha D. Mafalda dispõe de um equipamento moderno e diverso, mas parece não receber a atenção de outros tempos. Uma fonte de água quente corre para um tanque público e aquece o ar frio de um dia de inverno. São águas sulfurosas, o que explica o cheiro a enxofre que se sente à chegada. Do outro lado do rio, o comboio da linha do Douro atravessa a ponte em direção à estação de Aregos.
O Restaurante das Caldas fica no centro e assim que passamos pela porta podemos sentir o cheiro de comida tradicional, o que é o suficiente para abrir o apetite. A escolha é simples: anho assado no forno a lenha, uma das grandes especialidades da região. A refeição, bem servida, não desilude, mas os olhos já estão postos na sobremesa: as Cavacas de Resende.
O doce é muito antigo, pelo que os registos são inexistentes, mas a lenda conta que estes doces tradicionais tiveram origem num casamento falhado. A boda estava preparada e o bolo estava pronto, mas o casamento não aconteceu. No dia seguinte, para não desperdiçar o bolo, cortaram-no em pedaços, cobriram-no com calda de açúcar, para lhe restituir a frescura e venderam-no pela região. A história, cuja veracidade não podemos assegurar, parece representar bem o povo da região que, unindo a simplicidade à vontade de ir mais longe, criou o que de melhor (e mais doce) podemos encontrar por aqui.
Terminada a refeição chega o momento de começar a aventura. A maioria dos turistas que por aqui passa, seguiria em frente, pela estrada nacional 222, à beira do rio Douro, por entre as vinhas que se estendem nas colinas. Seria agradável, mas não foi para isso que viemos. Temos os olhos postos na Serra Montemuro, segundo o geógrafo Amorim Girão,“a mais desconhecida serra de Portugal” e é para lá que vamos.
As estradas são estreitas por entre campos e montes e, em alguns momentos, dou por mim a pensar que seria difícil dois carros cruzarem-se. Raramente se cruzam e quando acontece há cedências mútuas que permitem continuar. Apercebo-me que deve ser normal encontrar um rebanho na estrada, já que, além de mim, ninguém parecia surpreso quando isso aconteceu (quando digo ninguém incluo os animais, que se desviaram elegantemente para nos deixar passar). A serra está salpicada de tesouros escondidos, com pontes, capelas, cascatas e dezenas de lendas.
Numa viagem por Montemuro, não podemos deixar de visitar a Princesa da Serra. A próxima paragem está definida: a Gralheira.
Passados alguns minutos, chegamos na aldeia mais alta do distrito de Viseu, a Gralheira, a 1130 metros de altitude. Há um pequeno choque térmico ao sair do carro, está frio, como seria de esperar numa tarde de janeiro. A aldeia está calma e silenciosa, há poucas pessoas na rua - há sempre poucas pessoas na rua - e este é o local perfeito para quem gosta de calma e silêncio. Este é o local perfeito para quem quer desaparecer e esquecer que existe um mundo lá em baixo.
As casas de pedra rodeiam as ruas de paralelos onde o movimento é escasso e os sons são apenas os da natureza e temos a sensação de que voltamos atrás no tempo, especialmente tendo em conta os quatro cavalos parados junto à porta da Toca dos Carvalhos, um pequeno café onde acabamos por entrar.
Pedimos algo quente e Alzira serve-nos uma chávena do que ela apresentou como sendo Chá de Caçador. Aqueço as mãos na chávena antes de provar e perceber que não é chá. “Tem álcool”, diz quem prova. Estamos de acordo, não é um chá convencional. “É criação do meu marido”, afirma Alzira. O marido, Fernando, recusa-se a revelar a receita: “É segredo. Só posso dizer que não é um chá feito com ervas, preciso da erva para alimentar os animais”, diz, entre sorrisos. Não nos vai revelar o segredo e nós não nos importamos. Terminamos de beber o “chá” quente e doce enquanto desfrutamos da vista para a serra, através das paredes envidraçadas. Na mesa ao lado, jogam às cartas e tudo parece encantadoramente simples e acolhedor.
Deixamos para trás as chávenas vazias sobre a mesa e saímos em direção ao próximo destino: a Casa da Torre da Lagariça, em São Cipriano. Ou, nas palavras de Eça de Queirós, A Ilustre Casa de Ramires.
A casa, com a sua torre, sobressai na paisagem, simples mas imponente. Um verdadeiro tesouro na serra, maltratado pelo tempo e sem o brilho de antigamente. A torre foi construída para defesa da linha do Douro, na época da Reconquista, mas com o estabelecimento das fronteiras mais a norte, perdeu a funcionalidade. A casa foi, então, adaptada para habitação, no inícios do século XVII. A estrutura que vemos é mais ou menos a mesma que Eça de Queiroz terá encontrado quando visitou Resende no fim do século XIX e que usou de modelo para escrever a A Ilustre Casa de Ramires.
A casa já foi mais“Ilustre”, já foi inspiração, mas hoje é um Imóvel de Interesse Público que repousa abandonado, à espera de um comprador que não se sabe se irá chegar. O seu valor é inestimável, mas a casa passa despercebida, assim como o vale onde está inserida.
O silêncio impera e sol põe-se atrás da casa, uma joia perdida numa serra desconhecida. Apenas mais uma, numa serra salpicada por tesouros escondidos longe de multidões, num cenário típico de um Éden na terra. É um segredo, um daqueles segredos que quando descobertos nos fazem sorrir com os olhos a brilhar. É um segredo só nosso, porque lá fora eles não sabem, nem sonham que o paraíso existe escondido na serra e que o pôr do sol aqui é o mais bonito.
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