Sabem quando estão a fazer o balanço do ano e depois percebem que, afinal, até fizeram muitas coisas giras? Imaginem que uma dessas coisas giras foi subir 2531 metros (o ponto mais alto de Portugal). Vão concluir que, se calhar, não só fizeram coisas giras como também espetaculares. E subir a montanha do Pico não é espetacular só pela subida (que, claro, conta), é também devido à realização pessoal, ao enriquecimento interior e à paisagem. O que fica da experiência é tão positivo que faz valer a pena todo o esforço e empenho para chegar até ao Piquinho.
Subir o Pico de madrugada, alinhas?
Diz-se que, por vezes, a ignorância é uma bênção e, neste caso, foi. Estava a almoçar, acabada de chegar à ilha do Pico quando surge o convite:
– Amanhã à noite, subimos o Pico?
– Claro que sim! – disse sem hesitar.
Ao aceitar o convite, não havia pensado nos contras, só nos prós: as condições meteorológicas eram favoráveis, tínhamos guia e era de madrugada, únicas horas possíveis para nós visto que tínhamos aquela sexta-feira e o sábado preenchidos. Porém, nada podia falhar. Se demorássemos mais do que o tempo previsto a subir, perdíamos o nascer do sol e ainda corríamos o risco de atrasar a descida, que também não podia acontecer, pois, na tarde de domingo, tínhamos que apanhar o voo de regresso a casa.
Os contras que não pensei: não tinha roupa e calçado adequado, nem experiência e iria com poucas horas de sono após um dia a andar em tour pela ilha.
O início da subida estava marcado para as duas da manhã de domingo. Começaríamos a subir a pé aos 1200 metros, a partir da Casa da Montanha, onde estaria à nossa espera o guia Renato Goulart. Ao contrário de mim, o melhor é ir com o sono em dia e descansar antes. O agasalho e o calçado também são importantes, porém, o guia pode ter solução, como foi o meu caso com o Renato, que é também responsável pela empresa Experience 2531.
Na bagageira do jipe, o Renato tinha imensas caixas com roupa e acessórios para subir a montanha. Ao ver os meus ténis citadinos, emprestou-me umas botas apropriadas, ainda um casaco extra, que coloquei por baixo do meu, umas meias quentes, luvas e um gorro. Outros elementos do grupo também aproveitaram acessórios como luvas e gorros. Para além disto, o Renato ainda emprestou a todos – éramos 10 – lanternas para a cabeça, bastões, sacos-cama e mochilas para quem não tinha como levar os sacos-cama.
Do hotel, levava apenas snacks e uma água de um litro e meio, que acabei por não beber muita com receio de precisar de ir à casa de banho – é que estava muito escuro e frio.
Uma subida sem fim à vista (não fosse madrugada)
Não me recordo se quando regressei ao hotel da Aldeia da Fonte já passava da meia-noite, sei que só tive tempo para vestir a roupa mais quente e confortável que tinha e sair. Com os colegas da viagem, seguimos para a Casa da Montanha.
Naquela altura sabia pouco sobre o nosso guia, muito menos que era o “Rei da Montanha”. Aquela seria a sua subida número 2614. “Deve conseguir subir a montanha de olhos fechados”, pensei. Contudo, vale sempre a pena ir com os olhos bem abertos, pois, do mesmo modo que não existem dois pores de sol iguais, também cada nascer do sol será único.
Já tínhamos enviado os nossos dados ao Renato ao longo da tarde para questões de seguro e controlo de entradas na montanha. Por isso, recebemos, antes da partida, um GPS que deveria andar sempre connosco e ser entregue à saída da Casa da Montanha.
Com todos bem equipados e lanternas ligadas, começamos a subir a montanha bem-dispostos. Uns, tal como eu, subiam o Pico, pela primeira vez, outros já eram repetentes. O Renato ia à frente a marcar o ritmo, eu no meio, a tentar acompanhar e a procurar não atrasar quem ia atrás de mim. Nas situações em que sentia que demorava mais, tentava compensar, acelerando ou subindo “dois degraus” de uma vez. Nesses momentos, nem usava bastão. Agora vejo que foram erros – é mesmo importante manter sempre o mesmo ritmo e poupar esforço sempre que possível.
Íamos em fila indiana e, como não queria que ser a responsável pelo atraso de quem ia atrás, ia em modo “missão”: concentrada no caminho, sem nunca olhar para trás e, como era noite, também não se via muita coisa. Cheguei a achar que era melhor assim.
Não tinha noção de quanto já tínhamos andado, mas começava a perder fôlego. Continuávamos a subir e começava a sentir as primeiras cãibras nos pés. Nem podia acreditar! Já tinha uma pequena distância dos membros da frente e, uma vez, se não fosse o colega de trás a reparar, já iria seguir por um caminho errado (provavelmente depois repararia, mas o grupo tinha seguido pela esquerda e eu estava a ir pela direita). Começava a acusar cansaço.
Olhava para cima para tentar perceber se já estávamos quase a chegar, mas não conseguia entender. Os meus lábios já estavam todos gretados pois estava muito frio. Mas depois de muito subir, comecei a ficar com calor e acabei por tirar um dos casacos.
Quando fizemos a primeira paragem pensei: “será que já fizemos metade do caminho? Não será assim tão mau”. Para minha infelicidade, ainda não. Percebi que subir seria mais difícil do que o que esperava e, se já estava cansada, como iria chegar ao topo? Bebi um bocado de água, comi um chocolate e observei aquele belo céu estrelado.
Depois, o Renato pediu que fosse para a frente para ver se não perdia o ritmo. Comecei bem, porém, rapidamente voltei a perder o fôlego e a duvidar se conseguiria chegar ao fim. Para alimentar o receio, um elemento do grupo começa a sentir-se mal pois levava muito peso nas costas: um drone, câmara fotográfica, objetivas e água. O Renato distribui o peso entre ele e outro elemento do grupo. Eu também deixei de levar a minha água.
Seguimos viagem. Eu mais leve, outros mais pesados, mas parecíamos todos bem. Diz-nos o Renato que todos os elementos importam e têm o seu papel. Quem sabe, na descida, o “elo mais fraco” não passa a ser fundamental. Repete-o várias vezes. Insiste na importância de todos e, na verdade, todos foram olhando uns pelos outros sempre que necessário.
Mais uma pausa, conclui-se que o melhor é eu continuar sem mochila. Continuo, agora mais leve. “Se soubesse que era assim, não tinha vindo”, penso, mas não há volta a dar. É noite e estou no meio da montanha. Só tenho uma hipótese: seguir. E sigo (que remédio!). E depois para descer? “Não penses nisso agora”, dizem-me. Mas não conseguia deixar de pensar no regresso. “Onde me tinha metido?”. Começava a entrar em pânico.
A partir da cratera do vulcão, deixamos os bastões e cada um teve de levar a sua mochila. Olho para cima e percebo que temos que “escalar”. Como? Nunca tinha feito escalada. E depois para descer? À primeira vista, pareceu-me uma missão impossível. Pensei em ficar ali à espera. Contudo, não me deixaram. Dei por mim, estava a escalar. Quando me faltava a força, o meu companheiro puxava-me pela mochila e lá ia eu, rocha acima.
Filho, estou no ponto mais alto de Portugal
Assim que cheguei ao topo, tive vontade de pegar num cartaz a dizer: “Filho, estou aqui!”. Como poderia eu ter pensado ficar a meio do caminho? Já viram o que é poder dizer ao miúdo que a mãe já esteve ali, no ponto mais alto de Portugal? Melhor, poder convidá-lo, visto que sei que consigo chegar lá acima– ainda que mãe sedentária.
Ao longo do caminho, disse, várias vezes, que se soubesse o que me esperava não me tinha aventurado, mas, a verdade, é que consegui e valeu a pena. Chegamos ao topo ainda antes do amanhecer e vimos um nascer do sol incrível. Às vezes, até me esquecia que estava acompanhada. É que a paisagem impõe-se de tal forma que parece que não há mais nada.
E, mesmo lá em cima, pude ver a silhueta da montanha desenhada nas nuvens. Olhávamos para a frente, em direção a São Jorge, e lá estava perfeita a sua sombra.
Tiramos fotografias em grupo, rimos, mas recordo mais o silêncio e o estar acima das nuvens a observar o nascer do sol, para além de um sentimento de paz e serenidade. Saímos de lá com uma sensação de realização pessoal tão grande que percebemos que o prémio não é só chegar ao topo mas sim a riqueza que ganhamos no nosso interior. Até porque, só num dia, chegam a subir centenas de pessoas. Logo, não estamos a fazer algo único, a menos que seja só para nós e é isso que deve importar.
Quem sobe, desce
No Piquinho, quando estávamos nos sacos-cama à espera do nascer do sol, não deixei de não pensar no modo como ia descer dali, pois, para mim, aquela parte era muito íngreme. Para meu espanto, foi fácil. Bastou seguir o Renato e descer, como ele, a caranguejo.
Fiquei mais descansada e, claro, comecei a achar que a descida não seria tão difícil como estava à espera. Descia animada em virtude de agora também poder apreciar a vista e perceber por onde tínhamos passado horas antes. Estava um belo dia. Claro que, uma hora depois (se calhar menos), já estava que nem podia. Comecei a abrandar e a sentir que me estava a arrastar. Os músculos doíam e sentia as pedras que pisava na planta dos pés. Comecei a dar bom uso dos bastões, mas não era suficiente. Também comecei a ficar para trás. Do fundo ouvia o Renato: “Bora, Ana!”, que acabou por ser a banda sonora da longa descida. Sentia que as minhas pernas não davam para mais, mas o Renato insistia e eu já dizia para continuarem sem mim, que eu lá chegaria pois já era dia e conseguia ver o caminho. Ignorando o meu pedido, o Renato sugeriu que eu passasse para a frente. Achei que ele não estava a perceber que eu estava no meu limite, porém, funcionou: consegui manter sempre o ritmo e chegar à Casa da Montanha.
*O SAPO Viagens visitou a Ilha do Pico a convite das Casas Açorianas
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