Viajar no Inverno tem os seus encantos, mesmo em Portugal, e mesmo – ou talvez devesse dizer sobretudo… – quando os termómetros pouco sobem dos zero graus, e por vezes até descem abaixo do ponto de congelamento. Nesta altura do ano não há grandes dificuldades em arranjar alojamento onde quer que seja, nem mesas livres nos restaurantes, nem há enchentes de pessoas a visitarem os mesmos lugares que nós. Viajar pelo nosso país no Inverno (ainda) é um sossego.
Aproveitando o tempo já muito frio mas ainda com sol, num destes últimos fins-de-semana rumei a norte para ir conhecer mais um pedacinho do interior de Portugal e revisitar a sempre apetecível Serra da Estrela.
Uma mina que brilha com o sol
A primeira paragem foi no local que era um dos principais motivos desta viagem: as Minas de Queiriga. Situadas uns quilómetros acima de Viseu, junto à N329 entre Sátão e Vila Nova de Paiva, não é difícil dar com elas (existem setas a indicar o caminho) e é possível ir de carro até mesmo junto da entrada.
Com o nome de Minas dos Lagares, foram intensivamente exploradas na primeira metade do séc. XX, e delas extraía-se cassiterite e volframite. Actualmente, apesar de existir (será que ainda existe?...) um projecto para a exploração turística do local (há até uma espécie de cabina já muito destruída, que seria presumivelmente uma bilheteira), as minas estão completamente ao abandono.
O local é tranquilíssimo e absolutamente nada claustrofóbico, pois há várias aberturas naquilo que podemos considerar a parede/tecto da mina, por onde entram o ar e o sol. E o ideal é mesmo visitá-la em dia de sol e entre o meio-dia e as três da tarde, quando os raios penetram pelas ditas aberturas e iluminam o lençol de água que existe no fundo, revelando a sua cor azul-turquesa, vibrante e absolutamente encantadora.
Quando o sol está mais baixo não se consegue ver a água, que está num nível bem mais baixo do que a galeria por onde percorremos o interior da mina – que de resto não é muito extensa. É possível, para quem for aventureiro e tiver alguma prática de andar em zonas escorregadias, descer até àquela espécie de lago, mas não é tarefa fácil a não ser que o nível da água tenha subido bastante: a inclinação é grande, as rochas estão muito húmidas e há muita pedra e areia solta, certamente fruto de derrocadas mais ou menos recentes. A forma como estas minas foram exploradas criou uma enorme quantidade de colunas rochosas inclinadas, dispostas regularmente, que são a características mais original do lugar, fazendo lembrar uma floresta petrificada.
Vila da Ponte, Sernancelhe
As “Terras do Demo” que Aquilino Ribeiro imortalizou no seu livro com o mesmo nome definem-se mais ou menos pelo quadrilátero formado que se estende entre as localidades de Vila Nova de Paiva, Moimenta da Beira, Sernancelhe e Aguiar da Beira. O escritor nasceu em Carregal e viveu nesta região beirã durante a sua infância e adolescência, e foi a estas terras duras que foi buscar muita da inspiração que esteve na origem das suas obras. Um dos rios que aqui passa é o Távora, e nele foi aberta a Barragem do Vilar, inaugurada em 1965, nas margens da qual se aninham algumas aldeias interessantes.
Uma delas é Vila da Ponte, a que chamam “Pérola do Távora”. Habitada desde o tempo dos romanos, a sua história é tão rica quanto antiga, e tem agora também um espaço de lazer muito agradável, criado junto rio.
No cimo de um monte vizinho ergue-se o Santuário de Nossa Senhora das Necessidades, com um fantástico miradouro de onde se pode ver toda a paisagem até à Serra do Marão e um simpático parque de merendas, particularmente bonito nesta altura do ano em que as árvores se despem e as suas folhas castanhas vão juntar-se no chão ao verde da erva e do musgo que cresce nos granitos.
Aldeia de Fonte Arcada
Também a história de Fonte Arcada se perde no tempo. O nome da povoação vem da fonte com arco ogival que ainda podemos ver, agora protegida por um vidro, no sítio da Cova da Moura (que tem, como não podia deixar de ser, uma lenda associada), e que data dos sécs. XIII ou XIV – ou até talvez XII, pois não se consegue precisar ao certo a sua origem.
Há muito para ver nesta localidade, que é surpreendentemente bonita: uma igreja românica, um pelourinho, vários solares do séc. XVII, casas antigas de pedra com varandas de madeira, um santuário (nesta região parece haver tantos santuários quantas terras…) dedicado a Nossa Senhora da Saúde, e uma peculiar Torre do Relógio, que na realidade não tem um relógio mas sim um sino, e foi erguida num local a que chamam Castelo, embora do dito cujo não haja qualquer vestígio. É daqui que temos uma vista privilegiada sobre o casario da localidade, do lado nascente, e a barragem, do lado onde o sol já se punha.
Vila de Sernancelhe
A Sernancelhe chegámos já de noite, que os dias de Inverno são curtinhos. A luz artificial mostra-nos uma outra perspectiva dos lugares, e dá-lhas até uma certa aura de mistério. A vila estava posta em sossego, apesar de ainda ser cedo, em parte provavelmente por estar bastante frio, ou talvez porque àquela hora, percebemos entretanto, decorria uma missa na Igreja Matriz, velha de nove séculos – com a porta de madeira bem fechada, não fosse alguém ter a triste ideia de entrar e levar consigo a temperatura gélida do exterior, mas com o som a ser transmitido tão alto que se ouvia cá fora. Dali subimos uma rua até à Porta do Sol, o castelo medieval que já existia antes de Portugal ser um país, e depois continuámos a subir as escadinhas até à Santinha, de onde poderíamos ver toda a vila e os arredores, não se desse o caso de a noite estar tão escura.
Jantámos no restaurante Casa do Avô, em Sarzeda, a meia dúzia de quilómetros de Sernancelhe. Pequeno mas muito cuidado, tranquilo, com um atendimento impecável e comida saborosa, entre o tradicional e o moderno, muito à base de assados e grelhados.
O alojamento que reservámos foi nas Casas Aldeia da Lapa, mesmo junto ao famoso santuário com o mesmo nome. Ficámos no quarto Castanheiro, grande, confortável e muito bem decorado, com acesso directo para a rua e uma janela na porta com vista para a lateral da igreja.
O domingo amanheceu com um manto branco de gelo a cobrir carros, telhados e ruas, mas com um sol radioso que aos poucos foi derretendo todo aquele gelo.
Depois do pequeno-almoço fomos dar um passeio a pé até à nascente do Vouga, que fica a cerca de um quilómetro. Mais gelo nos caminhos, a condizer com um ventinho cortante que se fazia sentir, mas o prado onde surge a nascente, mesmo ao pé de um menir, já estava descongelado pelo sol. Depois de uma volta pela aldeia, e com o carro já na sua cor original, voltámos à estrada.
Linhares, em Celorico da Beira
O nosso primeiro destino na Serra da Estrela foi a aldeia histórica de Linhares. As duas torres do castelo vêem-se bem desde muito antes de começarmos a subir a encosta da serra, e o castelo foi precisamente o ponto de partida para a nossa visita.
Não sendo particularmente interessante como monumento – o interior é completamente despido – vale a pena pela vista de 360 graus que se nos oferece quando percorremos a muralha, com o vale do Mondego de um lado e a aldeia do outro. Estamos 820 metros acima do nível do mar, e isso nota-se.
Depois passeámos sem rumo definido pelas ruas estreitas que se entrelaçam umas nas outras, por vezes passando por baixo das próprias casas. Linhares tem origem medieval, mas conheceu grande prosperidade nos sécs. XV e XVI, razão pela qual alguns edifícios estão decorados com janelas manuelinas. O melhor exemplar destas janelas está naquela que é chamada de Casa do Judeu – a porta de entrada para a antiga Judiaria.
O almoço foi no famoso restaurante Cova da Loba, e como seria de esperar estava excelente, desde a sopa à sobremesa, passando pelo vinho, e pelo atendimento a condizer.
As 10 capelas da Senhora do Desterro, em São Romão
Já que estávamos em maré de santuários, a paragem seguinte foi na Senhora do Desterro, já depois de passarmos Seia e São Romão. Aqui o rio é outro, o Alva, e foi represado para formar um lago tranquilo entre o arvoredo, com as várias capelas – no “módico” número de dez – a espalharem-se por ambas as margens. A minha preferida é (será coincidência?) a da Nossa Senhora da Boa Viagem: simples, com muito branco e pouco dourado, o tecto de madeira e o fundo do nicho que abriga a imagem da Virgem pintados num lindíssimo tom de azul.
Cerca de um quilómetro mais acima na encosta, seguindo a indicação da seta e indo por uma estrada de terra batida não em muito bom estado, encontramos uma das formações rochosas mais famosas da Serra da Estrela: a Cabeça da Velha. A natureza tem destas coisas…
Uma das aldeias mais bonitas da Serra da Estrela
Com o sol já a descer a toda a velocidade, chegámos finalmente a Loriga, uma das aldeias mais bonitas da serra, sobretudo pelo privilégio de estar localizada num anfiteatro natural. Mais à frente na estrada, a belíssima e também lindamente situada praia fluvial, onde mãos engenhosas aproveitaram o relevo pedregoso natural e criaram uma sucessão de piscinas e pequenas cascatas, que seriam muito apetecíveis numa altura do ano menos… digamos que… fresquinha.
Estando do lado oeste da serra, onde nalguns pontos o gelo nem tinha conseguido derreter – sendo por isso um lugar ideal para saltar de contentamento, como se de neve se tratasse – e depois de um dia de céu intensamente azul, é claro que o pôr-do-sol teria de ser algo de admirável e absolutamente fotogénico, perfeito para fechar da melhor maneira mais um fim-de-semana memorável.
A Ana é a autora do blogue Viajar porque sim, onde uma versão deste artigo foi publicada originalmente, e escreve segundo as normas do antigo Acordo Ortográfico.
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