A lei chama-lhe língua portuguesa, o mirandês

Por Rui Peres

Quando os avôs e avós de Miranda do Douro se sentam nos fardos de palha, ou nos bancos de pedra, a assistir até de madrugada a um espetáculo de rock mirandês, quer dizer que a mensagem linguística passa, ou seja, não é como corar (onde não existe uma intencionalidade). Quando um pastor alemão rosna a outro cão está a avisá-lo: “o melhor é saíres daqui”. Mas o cão não rosna para ele próprio nem tem medo do seu rosnar. Os dois cães partilham o mesmo espaço mas a linguagem entre eles não partilha do mesmo significado, não existe. Existe, sim, uma troca de sinais. É a língua, o idioma, que nos distingue como seres humanos, o que também é aplicável à linguagem de surdos-mudos.

Uma língua é um conjunto de regras assumidas por um grupo de falantes que se entendem. As línguas são-nos impostas e não as podemos mudar, a não ser que seja “sem querer” (neologismos) ou em concordância legislativa. As línguas não fariam sentido se pertencessem a um único falante. Língua e dialecto não têm diferenças linguísticas. O dialecto é apenas uma forma de representar uma língua – ninguém fala como o outro.

Atualmente existem cerca de 7000 línguas no mundo. O mirandês é uma delas. Pertencente à família do Leonês, é uma língua com reconhecimento oficial, lecionada nas escolas do Nordeste Transmontano e falada nessa região (por cerca de 2000 pessoas). As línguas não têm fronteiras, mas, apesar disso, são normalmente faladas por gentes vizinhas, neste caso em particular, também em território espanhol. O mirandês, que antes era dialecto, não mudou nada desde o seu reconhecimento, e a lei veio chamar-lhe língua em 1999, e, por isso, partilha com todas as outras línguas um conjunto de características cuja combinação permite a produção das diferentes gramáticas ou regras (vocabulário, fonética, sintaxe, entre outras). Todas as línguas pertencem à mesma espécie. “Esta unidade entre as diferentes línguas, que nos conduz a falar de uma só espécie linguística, em nada denega nem contradiz a diversidade, que se baseia nos mesmos argumentos seja para plantas ou aves”, avança António Bárbolo Alves, Linguista e Apicultor de fim-de-semana.

Neste sentido, o mirandês configura um arquétipo semiótico (uma estrutura que produz significado) de entendimento do mundo, configurando-o à sua maneira, com o seu vocabulário específico, expressões particulares, metáforas, estrangeirismos, mecanismos para descrever acontecimentos, assinalando as relações dos falantes. Expressar não sonhos, e, principalmente, sonhos é o objetivo da língua mirandesa.

Poder-se-á pensar que as línguas que vivem sobretudo no seu estado natural, a fala, agarradas a um mundo rural ameaçado ou em vias de desaparecer, pouco ou nada têm para nos ensinar e que dificilmente são capazes de se adaptar ao mundo moderno. Talvez não. Por exemplo, a história do latim, ele próprio uma língua de pastores e agricultores, bastaria para mostrar a omnipresença da vida rural na própria língua. Palavras como delirar (sair do sulco, a linha ao lavrar a terra), rival (aquele que tinha direito ao mesmo curso de água para regar a sua horta), pobre (reservado aos produtos da terra, ao que produzia pouco, cujo antónimo é feliz, aquele que produzia muito), campeão (cuja etimologia é campo), mas também vocábulos do domínio do livro e da poesia que têm também origem nessa realidade campestre: rúbrica” (terra vermelha, significando a tinta de cor vermelha),página (conjunto de cepas, ordenadas, simbolizando uma vinha organizada retangularmente), verso (o movimento da terra com o arado, que chega ao término do sulco e faz o verso, o andar ao contrário, tal como num poema) e livro (papiro, planta herbácea, cujas folhas eram usadas para escrever), para referir alguns exemplos.

De igual modo, também a língua mirandesa foi modelada pelos trabalhos agrícolas, pelos fenómenos naturais, pelas estações do ano. Por isso, que imagem mais unida umbilicalmente entre o homem e o universo/natureza do que dizer, em mirandês, de alguém que nun ten mais que l die i la nuite (o Tempo está, convencionalmente, dividido em segundos, dias, semanas, meses, mas, na realidade, existe o dia e a noite), ou dizer la cinta de la raposa (arco-íris, em português, cuja simbologia remete para um animal matreiro, mas quase doméstico, uma espécie de projeção do homem rural que se sente perseguido, injustiçado, mas que consegue vencer com a sua astúcia, ou seja, um homem misto, de várias cores, um arco-íris), ou as sementeiras (a imagética da reprodução divina do gesto umbilical). Mais, quando falamos da terra lavrada e preparada para ser semeada, dizemos que ela está pronta, e o mirandês acrescenta que ela stá aceçunada ou criançosa, porque, tal como o útero materno, é ela que alimenta e dá vida. Das flores, quando as primeiras pétalas começam a despontar, diz-se que já vão “namoradas”. São metáforas com potência e que aprendo com o Linguista António Bárbolo Alves.

o mirandês nunca precisou da palavra semáforo, mas, caso precise, criá-la-á

Os mirandeses, a terra mirandesa, vive entre a realidade e o simbólico/primordial. É natural que muito seja marcado pela crença, e, portanto, um paraíso para o antropólogo ou ficcionista. É no mundo da magia onde encontramos também grande riqueza de símbolos e conceitos. O bruxo”, tal como é escrito em português, pode ser aquele que enfeitiça, mas é também aquele que cura. Ou que dizer da figura capaz de se metamorfosear em páixarina (borboleta), empita (galinha) ou mesmo em coluobra (serpente). É por isso que as serpentes são a encarnação das forças demoníacas, que bebem o leite materno, porque têm um mamar muito doce, enganam as mães. Com estes exemplos acredita-se que a palavra tem a força mágica de convocar a sua presença, por isso, as entidades que causam medo (por exemplo, a palavra “Diabo”), em mirandês, nunca se nomeiam pelo seu nome, chamando-lhes apenas “la bicha” (os bichos), não fazendo assim o seu chamamento, não falando deles. Foge-se do mal não o nomeando, e, desse modo, ele não poderá responder. E com isto talvez quebre aquela ideia para com as línguas mais rurais: o de que só servem para designar coisas concretas e não o abstrato. Outra das ideias da linguagem é o de que “a minha linguagem é mais ou tem mais palavras que a tua”. As línguas têm exatamente as palavras que precisam para expressar o mundo (o mirandês nunca precisou da palavra semáforo, mas, caso precise, criá-la-á).

Agora, um pouco de rock. O mirandês não serve apenas para falar do tradicional. A banda Pica&Trilha, um grupo de rock rural, nascida em Sendim, concelho de Miranda do Douro, canta em mirandês porque “ye la lhéngua que mamórun mal salirún de l bientre de la mai. Las lhetras falan de las bibências rurales de las gientes mirandesas i de ls prolemas de l Anterior Trasmuntano. Al bibo, la banda lhieba siempre pa l trabiado ferramientas agrícolas i fazen coreografies chenas de ironie i surrealismo. Lhançórun l sou purmeiro trabalho discográfico – Lhabradores al poder – an agosto de 2023, cun 13 temas ouriginales”, relata Emílio Martins, Vocalista e Professor.

O instante consente. A mensagem passa. As avós, os avôs, os todos, os muito ou os que se sentem nada, levantam-se e aplaudem.

Podem seguir as crónicas de viagem do Rui, que se descreve a si próprio como um "poeta falho, turista e turrista" no SAPO Viagens ou no seu perfil de instagram.