São sete da manhã, os motores dos tratores aquecem. O vento leve abana os chapéus e passa pelas roupas não muito engomadas. O grupo divide-se porque há várias vinhas. Dá-se o último rebate e parte-se em fila mais ou menos indiana. Se houvesse prémio de velocidade ninguém ganhava. Não há pressa. Vão todos com vagar, em marcha lenta, com os baldes enormes, chamados vindimos, ainda vazios, dentro dos atrelados dos tratores.
O horizonte poderia conduzir esta gente a qualquer lugar, mas, neste caso, leva-os às vinhas da região de Trás-os-Montes, sub-região do Planalto Mirandês. A cor da terra tapa-se pelo verde das videiras, longas, que escondem o fruto tinto, ou branco, dependendo da casta. Muitas histórias se devem às vindimas. Em pouco tempo, estes frutos estarão transfigurados. O processo é simples. Cada um tem uma tesoura de podar, umas luvas e um balde pequeno que se enche de uvas e vai-se arramando nos vindimos. Estes, que também se vão enchendo, cada um com a sua cor - os de uva branca e os de uva preta - são depois carregados em ombros até aos tratores. Vêem-se uvas tintas e brancas misturadas. São uvas que vão falar outras línguas, experimentar outros sabores.
Este processo artesanal e geracional parece estar escrito na terra por gente que nem sabia escrever. Quem dera que todos os avós estivessem ali, deve ser um pensamento recorrente de qualquer vindimador. Em cada uma das vinhas o trajeto faz-se de uma ponta à outra. As vidas cruzam-se, os risos e os baldes andam de um lado para o outro, as memórias sobrevivem aos anos. “O ano passado, numa cepa, encontrei uma lebre bebé. Estava a dormitar e deixou que lhe fizesse festas no pêlo", diz, por exemplo, o L. As mãos menos experientes usam luvas que impedem o toque direto na uva e as ferroadas com a tesoura. Quem não usa luvas aproveita e pinta as unhas de negro. De vez em quando, lá se prova uma. Os dentes ficam pretos e as gengivas a meter medo.
Nesta região há vários tipos de uva - a tinta garcia ou a branca síria. E o bastardo que, por exemplo, é uma uva pequena que tem bagos redondos, muito colados uns aos outros, com cheiro a maduro. Sabem a uva mas parecem guloseimas.
Durante a colheita a lombar curva-se para a frente e os braços esticam-se para alcançar o cacho a ser cortado no topo. A forma mais abreviada de aliviar a dor da coluna é pensar no almoço de convívio.
Quando os baldes estão cheios a colheita dá-se por terminada. Os tratores arrancam e toda a gente dá indicações de manobra. Com lentidão, estes, atravessam os socalcos para sair das vinhas e as uvas aproveitam para descansar um pouco, pela estrada, até chegar à adega. Aqui, recolhem-se as uvas: as boas, as tocadas, as rosadas, as verdes, as pretas, as picadas pelos pássaros. Depois são despejadas na trituradora que retira os caules da uva para um recipiente e as uvas moídas para outro, o lagar, construído normalmente em cimento. O número de uvas pretas e o número de uvas brancas não é equilibrado. A natureza também não o é e, portanto, tudo faz sentido.
É de companheiros destes que as viagens precisam. Ninguém faz vincos na testa, nem torce o nariz, quando é preciso puxar mais um balde ou colher mais uma videira que ficou esquecida. É preciso trabalhar a terra o ano todo para beber vinho e partilhá-lo com os amigos. Isso implica podar, recolher vides, escavar, fertilizar, aconchegar, colocar enxofre quando os bagos da uva têm o tamanho de um grão de chumbo, vindimar e pisar a uva dançando ao ritmo de música tradicional. Os pés, descalços, parecem pequenas embarcações que se afundam. A uva irá transformar-se em vinho, personagens e histórias.
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