Enquanto viajei, vi muitas coisas e vivenciei muitas experiências que me fizeram perceber que não posso ter motivos de queixa da vida que levo. É uma coisa boa que o contacto com outras culturas muito diferentes traz. Eu gosto de emergir nessas culturas e tornar-me menos egoísta com aquilo que vou aprendendo enquanto viajo, por isso gosto de fazer voluntariado. Experienciar a forma como vivem por uns dias ou por um mês é bem diferente.
Como gosto tanto do Myamar, queria muito fazer voluntariado no país para poder ter esse tal contacto mais genuíno com a cultura e costumes, ideais e crenças. Foi por isso que por esta altura, no ano passado, decidi fazer voluntariado no Myanmar, numa zona onde turistas não vão - Mu Aye Pu.
Não é um campo de refugiados, mas é um local que faz fronteira com a Tailândia para onde as pessoas do estado Karen se deslocaram para fugir aos conflitos com o exército birmanês. Os Karen são um dos grupos étnicos que existe no Myanmar - existem várias dezenas deles. São perseguidos pelo exército birmanês. Neste preciso momento, há pessoas a fugirem de suas casas que são queimadas pelo exército. Mas, no entanto, neste mundo Ocidental, ficar em casa é muito mau…
Foi com este voluntariado que aprendi muitas coisas sobre o Myanmar, já que as conversas com a minha hoster eram sempre muito didáticas. Esta aldeia onde estive está separada da Tailândia por um rio. Bem perto, mas no lado tailandês, moram imensos refugiados Karen que estão na Tailândia ilegalmente. Fogem da opressão exercida pelo exercito birmanês. Conseguia distingui-los dos tailandeses pois continuam a usar as suas roupas Karen tradicionais, e têm os dentes vermelhos, como é típico nos birmaneses.
Passava o rio para o Myanmar através de um barco que se puxa com uma corda de um lado para o outro. Eles têm um acordo com os tailandeses que lhes permitem fazer isto. Nesta aldeia vivem os militares Karen e as suas famílias. Fiz voluntariado com uma senhora já com mais de 60 anos alemã. Casou-se com um soldado birmanês e agora aquela é a sua vila, a sua casa.
Entretanto, ela se separou e agora vive com 2 filhos de sangue e 4 adotivos. Ser mãe sem ser casada por estes lados é uma vergonha grande demais para aguentar, então esta senhora alemã fica com as crianças para que as mulheres locais possam ter uma “vida normal”. A aldeia fica no meio do nada. Tão no meio do nada que foi difícil encontrá-la…
No dia em que cheguei era o dia da independência Karen. Era suposto haver celebrações e era isso que ia fazer nessa noite, testemunhar as celebrações. Mas acabou por não acontecer. Foi o primeiro dia em que cheguei e ainda não sabia muito sobre o sítio, apesar de ver imensos militares armados para trás e para a frente. A aldeia está toda vigiada por militares Karen que ficam em alerta de possíveis aproximações do exército birmanês.
Essa noite para mim foi horrível. Acordei às 4 da manhã com sons de vários disparos de armas seguidos por o som de uma explosão. Fiquei em pânico. Imaginei que estivesse a passar qualquer coisa de muito mau ali perto. Comecei a rever na mente o último filme que vi sobre o Myanmar e como os soldados entravam nas casas à noite e matavam tudo o que mexesse. Pensei para mim, ainda que incrédula, se isso poderia acontecer naquela noite. Passaram-me muitos e variados pensamentos pela cabeça, mas a conclusão foi certa: como é que alguém consegue viver assim neste sobressalto?! Nas horas seguintes, não preguei olho a formular teorias da conspiração na minha cabeça. Mal podia esperar pelo dia para confrontar a minha hoster com o que se terá passado. Ela riu quando lhe perguntei. Disse que foram as celebrações da independência Karen que afinal sempre aconteceram. Nem sequer tinha ponderado essa hipótese… Ela disse-me que eram foguetes. Não, podiam ser tiros de celebração, mas foguetes não eram de certeza pois o som de um e outro são distintos.
Nesse voluntariado, estava eu e outro voluntário, e as nossas funções eram melhorar as condições dos ursos. Sim, ursos. Acontece que nesta área remota ainda vivem ursos negros asiáticos que são caçados. São muito valiosos para os chineses que pagam muito dinheiro por eles. Neste caso, o que aconteceu foi que a mãe destes ursos foi morta enquanto eles eram bebés, e por esse motivo, os aldeões decidiram ficar com eles, caso contrário não sobreviveriam.
Eram dois ursos bebés, mas cresceram… À medida que foram crescendo, foram dando muita despesa e problemas. Assim que se fartaram dos ursos, os aldeões deram-nos a esta senhora alemã que me acolheu, e a partir daí ela ficou encarregue deles.
Os ursos fazem parte da família e têm nomes que já não lembro. Têm personalidades tão distintas. Tinha a minha favorita que era a que brincava mais comigo quando ia ao pé da jaula onde estavam. Estas duas ursas não sabem nada do que é viver numa floresta e por isso não podem ser libertadas. Vivem ali, e os voluntários vieram ajudar a criar um parque de diversões para eles. Construimos um cercado de tijolo com várias estruturas de pau para elas poderem trepar, brincar e lutar uma com a outra. São a atração da aldeia, que tem medo delas. Já conseguiram escapar várias vezes e deixar as pessoas aterrorizadas, mas não fazem mal a ninguém quando fogem. Só a dona é que fica sem umas galinhas…
Para além de ajudar nesta tarefa, também fizemos tijolos de terra para melhorar a casa onde esta família vive. O trabalho foi duro, mas ter estado aqui foi recompensador. O sítio é lindo, e a casa onde estive hospedada, inspiradora. Na casa estão afixadas algumas regras e avisos como: ter cuidado com cobras-rei e escorpiões durante a noite, não sair daquela zona povoada porque a malária está bem ali perto, não explorar os bancos de areia no rio porque ainda podem ter minas escondidas, não secar roupas de mulher no andar onde se vive, não interagir de forma íntima com os aldeões, se não há o risco de ser obrigado a casar.
A casa é mesmo ao lado do rio e tem uma vista incrível. Só tem quartos e uma sala com uma mesa e cadeiras com vista para o rio. Não há eletricidade. Só tinha uma pequena luz que durava umas horas à noite, uma luz que nem dava para ler de tão fraca que era. A aldeia tem painéis solares que foram oferecidos por ONGs, e para carregar telemóveis, computadores, etc., tinha de pedir à senhora alemã para o fazer na casa dela que tem dois painéis mais fortes. Também não precisava do telemóvel para mais nada a não ser ver as horas, já que Internet não há. Aliás, existe um sítio específico que consegue apanhar Internet. Mas tão especifico que se desvio o aparelho um cm posso ficar sem ligação. Uma verdadeira provação aos meus braços e portanto muitas vezes desistia e não queria nem tentar apanhar conexão.
De noite não se passava nada e por isso ia dormir por volta das 8.30 ou 9 horas. Nem para ler dava… Passava muito tempo a olhar para o céu que lá é tão estrelado! Lindo! Como não há luz na aldeia, as estrelas ficam mais evidentes e olhar para o céu era o que fazia à noite.
As casas de banho são à parte, fora da casa, e ir lá de noite era um bocado assustador. Tinha medo de me deparar com cobras ou escorpiões, mas felizmente só vi aranhões do tamanho da minha mão. A água chega aqui através de vários tubos estreitos que a trazem da montanha. Por vezes eles quebram, já que não são adequados para o efeito, e a aldeia fica sem água. Aconteceu duas vezes enquanto lá estive, e nesse caso não tinha outra solução a não ser tomar banho no rio.
Tinha muito tempo para explorar a área também, por isso, fui com o outro voluntário dar uma caminhada pelo meio do nada. Este é, sem dúvida, o local mais remoto por onde andei e sinto-me grata e excitada por ser dos poucos estrangeiros que já devem por ali ter andado. A área é ainda mais linda assim que mais exploramos. Que sítio arrebatador!
Para comprarmos alguns snacks, tínhamos de ir à vila mais perto que fica a 10 km. Como o outro voluntário era tailandês, tive sorte pois era fácil comunicar - até houve um dia que apanhamos boleia de volta. Existiam duas lojinhas com coisas muito básicas lá na aldeia onde estávamos hospedados, mas, por norma, estava tudo fora de prazo… Daí ser necessário a viagem de 10 km.
A aldeia é tão linda, relaxada e calma que acabei por ficar quase um mês. Nesta altura, andavam por aí as primeiras notícias do COVID-19 e não sabia muito do que se andava a passar pois não tinha contacto quase nenhum com o mundo exterior, a não ser uns minutos de Internet por dia. Era tão melhor estar lá, alheia do que se estava a passar na altura. O meu próximo destino era a China. Ironia do destino foi a primeira vez que pensei sequer visitar esse país. Tive o meu voo cancelado, e assim saí do voluntariado para a Tailândia, onde já não podia ficar muito mais tempo pois o visto estava prestes a expirar.
Este voluntariado foi uma experiência incrível e extremamente enriquecedora. Aprendi muito mais do que poderia imaginar e inspirei-me nele para saber o que quero do futuro. Apesar de ser o que mais esforço físico exigiu, este voluntariado foi o meu favorito. E nunca mais me esquecerei do sorriso radiante que esta senhora alemã exibia todos os dias em que lá estive. Penso que é a pessoa mais feliz que já conheci e, no entanto, vive no meio do nada e sem o que tanta gente considera como essencial. Olhava para ela e pensava como consegue estar assim tão feliz e excitada, bem-disposta todos os dias de manhã à noite. Mais do que tudo, este voluntariado foi uma lição muito grande. Uma lição que me ajuda agora a não olhar para esta situação pandémica como algo terrível.
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