Por: Tânia Neves, líder de viagens The Wanderlust
A mais clássica das rotas é a do Transmongoliano. Para os viajantes que só possam fazer esta viagem uma vez, é também a mais proveitosa: três países duma assentada, três línguas, três histórias intrínsecas, cosidas por uma só linha.
A rota de Moscovo a Pequim é uma história que se desenrola com sentido, os nossos hábitos vão-se adaptando gradualmente a todas estas novas culturas. Foi esta a viagem que fiz primeiro e é esta a viagem que continuo a fazer com mais frequência. É uma viagem que não termina no fim da linha, que começa quando acaba, ao regressamos a casa apercebemo-nos o quanto crescemos. E é esta viagem que aqui vos conto, a bordo do lugar 13 da 2ª carruagem do Transiberiano.
Km 0 - Moscovo
Chegamos a Moscovo. A Rússia é, por assim dizer, um tabu para a maioria dos viajantes. Todos os dias somos injectados com diferentes impressões dos media, que nos falam de uma população de personalidade fria, que não sorri. Moscovo é, na verdade, uma capital extremamente colorida, os Moscovitas (e os russos, no geral) são hospitaleiros e sempre dispostos a ajudar. Há grandes parques pela cidade, inúmeros parques infantis, e a organização e pontualidade de uma super-cidade que vive as 24h do relógio sem parar é impressionante. Tal como são as grandes salas das estações dos comboios e do metropolitano, o ex-libris inquestionável desta linda cidade. Tudo em Moscovo é feito à grande escala. É uma cidade que nos faz andar com o olhar para cima e o queixo para baixo.
É da grande estação de Kazansky que se embarca no comboio. À entrada de cada carruagem, as provodnitsas (responsáveis pela manutenção do interior das carruagens e bem-estar dos passageiros) verificam cada bilhete. Trabalham sete dias de enfiada, em turnos rotativos de 12 horas (há duas pessoas por carruagem com esta função). Cada passageiro, de todas as classes, tem direito a um saco com lençóis e toalhas lavadas. Na extremidade de cada carruagem, lavabos com sanita e lavatório, e junto à cabine da provodnitsa, uma fonte de água potável, e um grande reservatório de água a ferver, para preparar as refeições e bebidas durante a viagem. Há também uma carruagem-bar, que funciona sensivelmente entre as 9h e as 23h da hora local, se conseguirmos durante a viagem adivinhar em que fuso horário estamos... Esta carruagem muda conforme o país em que estamos: Russa na Rússia, Mongol na Mongólia e Chinesa na China.
Km 3343 - Novosibirsk
Passaram três dias desde que embarcámos nesta grande viagem. Quando chegamos à capital da Sibéria, estamos já quatro fusos horários à frente, mas os relógios indicam ainda a hora de Moscovo - a linha em toda a Rússia funciona à hora da capital (tal vai deixar de acontecer em agosto de 2018).
No comboio, as pessoas vão adaptando as suas vidas: lê-se, vêem-se filmes, e bebe-se vodka, muita vodka. Na terceira classe (platskartny) roda samogon - vodka caseira - entre as muitas famílias locais, disfarçada em sacos de supermercado e garrafas de sumo. Dizem os costumes russos que é má educação recusar vodka, e manda a tradição receber bem os que vêm de fora...
As paragens nalgumas estações estendem-se às duas horas, onde encontramos as muitas vendedoras ambulantes nas plataformas, com produtos que vão desde o famoso omul seco (o peixe do lago Baikal), biscoitos, souvenirs, e tudo o mais que possam imaginar.
Os passageiros aproveitam estas paragens para fumar, dar uma volta pelo centro, conhecer a estação ou simplesmente esticar as pernas e apanhar ar.
Até que chegamos a Novosibirsk, uma cidade com menos de 130 anos de história (foi fundada por volta de 1890, a propósito da construção da linha). Quando me perguntam o que me leva a gostar tanto de visitar a “feia” Novosibirsk, eu digo sempre que nada mais interessante que conhecer uma capital que é filha da própria linha. Nesta incrível metrópole vemos de perto a magnitude do transiberiano. Do nada, hoje Novosibirsk alberga inúmeros museus, tem uma noite vibrante, trouxe à Sibéria o estatuto cosmopolita e mostra a velocidade feroz a que as cidades se desenvolvem até nos meios mais inóspitos, consequentes da grande obra ferroviária.
Na periferia citadina ainda se vivem antigos rituais eslavos: das banyas com rituais espíritas às mágicas bonecas de pano. Aqui vê-se uma interessante mescla de contemporâneo e místico. É uma boa transição para as diferentes culturas que se seguem...
Km 5185 - Irkutsk
Irkutsk é apelidada de a “Paris da Sibéria”. Glamorosa desde a nascença, Irkutsk é por muitos reconhecida como a “verdadeira capital da Sibéria”, também por já existir desde o séc. XVII. A arquitectura de madeira com janelas adornadas está mais presente (e preservada) aqui do que em qualquer outra cidade russa, talvez também por ser uma cidade com maior afluência turística do que qualquer outra.
De Irkutsk ao Lago Baikal é um pulinho. O transporte é sempre nas famosas marshrutkas, as pequenas carrinhas de passageiros que levam sempre mais carga que a recomendada. Da imensidão do lago, o pináculo da visita está na ilha de Olkhon, epicentro do xamanismo e obra prima da natureza. Não podemos deixar de aproveitar a explorar a ilha nas míticas UAZ, as carrinhas russas dos anos 60 que são indestrutíveis e imparáveis! Olkhon é pequena em tamanho, mas diversa em paisagem: um mini-mundo com um deserto, uma floresta, praias, rochas, água, estepes, tudo concentrado nesta pequena ilha mágica.
Km 5640 - Ulan Ude
A viagem entre Irkutsk e Ulan Ude é o trecho mais bonito de toda a viagem. O comboio circula entre túneis e descidas, a lenta velocidade, circundando pela berma o grande Baikal. Ulan Ude é a capital da República da Buryatia, e a sua população, maioritariamente budista, ainda fala a língua nativa, apesar do russo ser predominante na cidade. É aqui que está o maior templo budista de toda a Rússia, que foi surpreendentemente mandado erguer por Estaline, em retribuição à população local pelos seus esforços na II Grande Guerra.
Voltando ao comboio, chegando à fronteira, faz-se uma paragem de 110 minutos de cada lado da fronteira. Vêm os oficiais russos, e depois os mongóis, verificam as bagagens, os passaportes, os vistos. Tudo sem que possamos sair dos nossos lugares. Muda-se também a locomotiva: a linha na Mongólia ainda não está electrificada, e o nosso comboio agora vai-se passar a mover a carvão e vapor.
Km 6306 - UlaanBaatar
Mongólia, terra do Genghis Khan, outrora o maior império do mundo. UlaanBaatar é uma grande cidade asiática que se tem multiplicado rapidamente.
Mas é fora da cidade que está a grande magia desta excêntrica cultura. Locais como o Parque de Terelj, a antiga capital de Kharkhorin, os grandes lagos, os cavalos selvagens, os treinadores de águias, os criadores de renas, as populações de camelos que cruzam o deserto. Tudo na Mongólia é um regalo para os olhos, e muitas vezes apelido este lugar como o “mais fotogênico do mundo”.
Km 7857 - Pequim
Quando voltamos a embarcar no comboio, rumo à China, já temos o sabor saudosista da viagem: este é o último trecho a bordo. Na fronteira, mudam-se as rodas do comboio. As linhas na União Soviética foram feitas mais estreitas, como forma de impedir que armamento e tropas invadissem o país naquela época, e assim permaneceram até hoje. Cada carruagem é separada e elevada em gruas pouco mais de 1m do chão. O sistema de rodas é retirado debaixo do comboio, e rolam um novo set. No total, da verificação alfandegária às mudanças nos comboios, são 5 longas horas noite dentro, que felizmente, podemos sempre optar por passar a dormir!
A chegada a Pequim, pode ser o fim da linha e o princípio da realização do novo eu. Para trás ficaram cinco fusos horários, três países, dois continentes, e provavelmente muitos novos amigos e histórias para contar.
Em Pequim temos não só a Grande Muralha da China, mas defrontamo-nos também com a Grande “Cyber” Wall da China: uma privação tecnológica que nos priva de redes populares como a Google (Gmail, Maps, Translate...), Facebook, Twitter, só para referir as mais populares. O impacto cultural passa também por este filtro da informação a que temos acesso. Um desafio quase tão grande como subir à muralha, na secção de Mutianyu (a minha favorita), com os seus mais de 4000 degraus para uma paisagem avassaladora. Que obra incrível!
As visitas obrigatórias em Pequim passam ainda pela Cidade Proibida, o Lama Temple, o Mausoléu de Mao, e claro, se comem carne não podem deixar de provar famoso Pato à Pequim.
Os mais aventureiros podem ainda seguir viagem, sob carris, até à proibida Coreia do Norte, ou mesmo até às longínquas cidades do Vietname.
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