Por: Manuel Carvalho - Projeto Prá Frente
Desprendemo-nos das redes mosquiteiras que ainda usamos por precaução, apesar de sabermos que as doenças transmissíveis por mosquitos praticamente não existem na cidade e levantamo-nos.
O processo matinal a que estávamos habituados em Portugal é um pouco diferente. É preciso ter cuidado a tomar banho, a lavar os dentes e a aquecer água para o café, pois já sabemos (e fomos bem avisados) que, se ingerirmos água da torneira não fervida, vamos ter queixas do nosso organismo umas horas mais tarde. Findo o processo, saímos de casa.
Chegamos à primeira rua, e os galos à beira da estrada parecem divertidos por nos terem despertado, enquanto alimentam as suas crias com algum lixo acumulado e que agora está envolvido em lama devido à chuva. De facto, quando chove, Nairobi torna-se um pouco mais caótica e suja, e este tinha sido o caso da noite anterior.
Já habituados a este cenário, não estivéssemos ainda no final da estação chuvosa, seguimos pelos passeios, ziguezagueando para evitar as poças que se formaram. Entretanto, começam a chegar-nos diversos aromas de comida a ser preparada para o dia, desde chamuças a serem fritas a pequenos churrascos de rua com proteína local.
Alguns comerciantes pelos quais passamos gritam-nos “Mambo” ou “Jambo” (Como estás?), aos quais o nosso humilde conhecimento de Kiswahili permite a resposta rápida “Poa” (Estou bem).
De seguida, rapidamente nos oferecem aquilo que estão a vender, seja roupa e calçado em segunda mão, ou vegetais e fruta fresca. Outros apostam em serviços mais específicos, como a limpeza dos nossos sapatos ou o uso de uma balança digital para nos pesarmos. A comunicação, desta vez, mudou para um inglês fluente de fazer inveja, o que já não é surpresa, pois sabemos que o ensino obrigatório em inglês torna todos os quenianos (no mínimo) bilingues. Sempre com um sorriso na face, mesmo depois de alguns “no, thanks”, ainda se mostram interessados em saber o que fazemos no país, e de onde vimos (já sabemos que as duas palavras seguintes são sempre “Cristiano Ronaldo”).
Chegados à avenida principal, um rápido gesto com a mão faz parar um autocarro sem porta, mesmo à nossa frente. Na verdade, a palavra correta é matatu e é o principal meio de transporte em Nairobi. Sempre exemplarmente decorados, seja com clubes de futebol da liga inglesa ou conhecidos artistas de reggae ou hip-hop, dirigem as pessoas pelo lado esquerdo da estrada através de percursos conhecidos pelos locais, e pela modesta quantia de 30 a 50 xelins quenianos (23 a 39 cêntimos).
No interior, fazem-nos companhia a música queniana, uma televisão, paredes com frases religiosas e um homem muito atento que memoriza os diferentes destinos dos 20 a 30 passageiros, ao longo da tal rota, enquanto recolhe os xelins a que tem direito.
Terminado o nosso percurso pela Ngong Road (uma das principais avenidas da cidade, com cerca de 27 km de extensão), duas batidas na parte de fora do matatu indicam ao condutor que abrande (sem passar disso) para que possamos sair.
De um lado da estrada, vemos um dos muitos malls que existem em Nairobi, centros comerciais moderníssimos que, por momentos, nos fazem parecer que estamos no mundo ocidental, com enormes supermercados e lojas de preços fixos.
Tentando fugir ao máximo a esse mundo ao qual não queremos regressar, o nosso destino é um restaurante local do lado oposto, onde pedimos um guisado de carne acompanhado de chapati, espécie de crepe que é uma das imagens da gastronomia queniana. Refeição deliciosa, como sempre, e que nos ficou cerca de 1.30€ a cada.
Agora de barriga cheia, chama-nos o nosso dever (e muita vontade) laboral e dirigimo-nos para Kibera.
Kibera é a maior favela de Nairobi e é até considerada a maior de África. Alberga entre 200 mil a 2 milhões de pessoas (dependendo da fonte), que recebem apoio de dezenas de instituições.
O início da favela é relativamente fácil de distinguir. A densidade de pessoas na rua rapidamente cresce. Veem-se carros, motas e matatus a tentar evitar os buracos na estrada não alcatroada, enquanto se desviam de peões que atravessam de um lado para o outro, carregando carrinhos-de-mão cheios. Nas bermas, a venda de vestuário e comida que encontrámos em Jamhuri duplicou e juntaram-se agora clínicas de saúde, cabeleireiros, lojas de ferramentas, hotéis, agências funerárias, talhos e escolas de condução, que se sucedem em pequenas construções de chapa metálica, sem intervalo entre elas.
De todas as zonas que já conhecemos da cidade, esta é sem dúvida a mais caótica. Mas dentro do caos encontramos muita harmonia e tolerância.
Pelo caminho, parei por uns minutos para observar dois homens que todos os dias jogam damas num dos passeios, usando tampas de garrafas.
De um lado, ouviam-se buzinas constantes e vinham nuvens de poeira, de matatus prestes a arrancar. Do outro, salpicos de óleo a ferver para fritar peixe, e moscas que se alimentavam dos já fritos. Nem por uma vez os homens tiraram os olhos do jogo. No entanto, assim que repararam que eu os estava a observar, olharam para mim e soltaram um sorridente “Karibu” (Bem-vindo).
Umas dezenas de metros adiante, chegamos finalmente a uma porta de metal negro. Só passaram 10 minutos desde que entrámos em Kibera, mas pareceram mais 40.
Abrimos a porta e imediatamente três cães disparam na nossa direção, seguidos por dezenas de crianças residentes na favela, que, apesar de nos conhecerem há menos de uma semana, nos abraçam como se fôssemos pais delas. Na verdade, não é por coincidência que, na entrada do espaço, se vê escrito numa pedra “From Kibera With Love”.
Projeto Prá frente
O Projeto Prá Frente foi criado por dois jovens engenheiros, com a intenção de conhecer (e partilhar) uma perspetiva completa do Sudeste Africano, focando-se não só no seu património deslumbrante, mas também nas suas pessoas e naquilo que tem para oferecer para o futuro.
Para saber mais siga o Instagram: @projeto_prafrente
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