Sou João Cruz, 48 anos, gerente bancário e, a Sara Ribeiro, é a minha esposa, 46 anos, técnica oficial de contas. Sempre pratiquei desporto, apaixonado por aventura, autodidata e amante de desafios. A Sara foi sedentária até 2018, data em que deixei de praticar ultra trail de 3 dígitos, participando no Ultra Trail du Mont Blanc, Madeira Island Ultra Trail para além de outras provas e travessias de BTT, Pirenéus (ligando o mediterrâneo até ao Atlântico) ou o Transalp (Alemanha, Áustria e Itália).
Estes desafios sempre foram feitos na busca dos meus limites e não da performance. O facto é que estes projetos, ao longo dos anos, nos faziam caminhar em sentidos opostos e ter menos cumplicidade.
Até que um dia, numa introspeção, desafiei a Sara a abraçar um projeto a dois, algo que que nos fosse sinónimo e que nos fizesse sonhar durante todo o ano, com uma mistura de desafiante.
Porque não escalar os cumes das montanhas mais altas dos Alpes? A primeira reação da Sara foi de pânico, pela completa estupidez do projeto, pois Portugal nem tem montanhas da magnitude dos alpes, nem tradição, nem conhecimento de alguém que nos pudesse formar.
Mas como para mim não existem impossíveis, era uma questão de delinear algo em concreto. Foi assim que começou o projeto.
Procurei e encontrei um alpinista no Porto que faz expedições para clientes como um modo de vida e sabia que o nosso optometrista que nos receita lentes de contacto há mais de 15 anos fazia escalada em rocha.
Recebemos formação de ambos. Um a pagar vários módulos e níveis de formação em alpinismo em Portugal e Espanha e o outro recebemos formação por altruísmo e amizade e assim andamos durante dois anos. Nesse tempo de formação juntaram-se mais dois amigos meus do ultra trail e travessias que quiseram abraçar também o projeto. O Gonçalo Miranda de 63 anos, talhante numa grande superfície, e o Ricardo Lima, de 44 anos, engenheiro civil.
Formamos um grupo coeso de duas cordadas, a Sara e eu, o Gonçalo (Salo) e o Ricardo. As formações proporcionaram vivências próprias com um único objetivo, tentar uma dúzia de cumes de 4000m nos Alpes sem recurso a guias, obrigando-nos a estudar com muita objetividade e tecnicidade no manuseamento do material e manobras, com sentido de responsabilidade, pois a cordada depende da sabedoria conjunta e nunca individual.
Atendendo que sempre fui o líder nas organizações das várias travessias e projetos anteriores, tinha skills suficientes para delinear toda a preparação e organização da logística dos percursos, escolha dos cumes, vias a serem escaladas, plano principal, escapatórias, plano de recurso etc.
Quando me é perguntado qual a maior dificuldade, respondo que é de facto ter motivação para treinar 6 dias por semana durante todo o ano, independentemente das condições climatéricas e/ou motivacionais. O que nos alimenta é a responsabilidade para com o teu elemento da cordada, “ele depende de mim, eu dependo dele”.
Treinamos pilates (todos juntos), treino funcional com um PT com a especificidade da modalidade, também todos juntos, e complementamos com corrida e bicicleta individualmente.
A atividade propriamente dita é o pináculo da satisfação, é o nosso palco onde atuamos e que tanto ansiamos, claro que tem dificuldades e muitos imprevistos e improvisos, no entanto tudo é colocado em prática como equipa e o deslumbramento das paisagens reduzem as dificuldades.
O ano de 2022 marca-nos, no entanto, pois as condições aceleradas do degelo devido às alterações climáticas, alteraram por completo o grau de dificuldade e classificações das montanhas escolhidas.
Todas as montanhas e vias de acesso aos cumes são graduadas pela União Internacional dos Alpinistas (UIAA). Essa graduação serve de base na escolha dos cumes face à nossa experiência e formação. Acontece que as condições climatéricas em 2022 baralharam por completo essas graduações, elevando em muito o nível do que nos propusemos fazer, ao ponto de ultrapassar o ponto de não retorno aos locais de segurança, sendo obrigados a seguir vias de dificuldades além da nossa formação e experiência.
Esse dia foi marcante pela exigência emocional que o grupo esteve sujeito, num estranho e ensurdecedor silêncio e compromisso para com o teu elemento de cordada e simbiose de manobras de corda e progressão, onde o instinto de sobrevivência nos levou a refúgio seguro.
No dia seguinte, quando acordamos no refúgio Campana Margherita a mais de 4500m de altitude (o mais alto da Europa), fomos brindados com um nascer do sol que representou para nós uma segunda vida, e ainda tínhamos mais 3 cumes como objetivo.
A falta de oxigénio, o misto de adrenalina e paisagens idílicas são o que te alimentam a continuar, provavelmente pouco imbuído de racionalidade, e assente em egoísmo, no entanto, essa noção só a tens com os pés assentes na terra ao nível do mar e não a 4500m!
O Gran Paradiso em Itália é uma montanha que te marca, pois, a ascensão e descida é toda efetuada sem auxílio de meios mecânicos, subindo desde os 1800m, até aos 4061m, em parque natural protegido com uma paisagem ímpar.
No entanto é injusto não relevar a espetacularidade dos outros maciços onde se inserem os outros cumes: Mont Blanc, Monte Rosa, Alpes Berneses e cidades e vilarejos, dignos de contos de fadas, Zermatt, Murren, Grindelwald, Lauterbrunnen, Chamonix, Gressoney...
Esta experiência elevou muito a nossa cumplicidade, serve de referência aos nossos filhos Gonçalo (16 anos) e Carolina (13 anos) que tudo é possível, basta acreditar e ser sério na abordagem aos problemas.
Fazemos ambos associativismo junto de uma coletividade que proporciona práticas de vida saudável assente no desporto, onde experienciamos para iniciantes a prática da escalada a troco apenas da satisfação pessoal (Associação Alexandra Carvalho).
E porque não queremos parar, já em julho voltamos aos alpes (Dolomitas, norte de Itália) para realizar uma travessia que apesar de desafiante e dura com imensas vias ferratas e escalada, o grau de risco à partida é significativamente inferior e muito mais balizado, serão 11 dias em autonomia.
São estes projetos que nos alimentam o dia a dia e que nos dão alento para voltar a repetir, ano após ano, em projeto comum.
A montanha é justa, só aceita quem lá merece estar, transformando-nos, pois coloca à tona a nossa essência relativizando os problemas comuns.
As montanhas escaladas acima de 4000m
2020
- Mont Blanc du Tacul - 4248m
- Dome du Gouter - 4304m
- Mont Blanc - 4810m
2021
Breithorn 4164m
- Grand Paradiso - 4061m
- Zumsteinspitze - 4563m
- Signalkuppe - 4554m
- Balmenhorn - 4167m
2022
- Naso do Lyskamm - 4272m
- Signalkuppe - 4554m
- Ludwigshohe - 4342m
- Vincent Pyramide - 4215m
- Corno Nero - 4322m
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