Mosteiro de Santa María de Monfero
Mosteiro de Santa María de Monfero: "um dos monumentos católicos mais originais que já vi até hoje", garante a Ana. créditos: Ana C. Borges

Há quem defenda que português e galego são uma e a mesma língua. Na verdade há muitas palavras galegas iguais às nossas, e diferentes das mesmas palavras em espanhol. Querem alguns exemplos? Mosteiro, castelo, ermida, setembro, comunidade, priorado… e até mesmo galego (que em castelhano se escreve gallego, os “ll” pronunciando-se como o nosso “lh”). E depois há outras que são completamente diferentes – mas que será boa ideia conhecermos, pois em viagem pela Galiza esse desconhecimento pode fazer-nos passar ao lado e ignorar lugares absolutamente fascinantes. Prestem sobretudo muita atenção quando lerem fragas, fervenza ou pozo. Porquê? Já vão perceber…

A Galiza, que é uma comunidade autónoma espanhola com uma identidade linguística e cultural própria, tem uma área de praticamente 30 mil km2 – quase um terço da dimensão de Portugal (mais ou menos o tamanho de todo o Alentejo). Se olharmos para um mapa físico de Espanha, facilmente percebemos que a cor dominante na região é o verde, em franco contraste com a maior parte do resto do país. Tanto verde só pode ser bom sinal, e a verdade é que a Galiza tem muito a descobrir para além dos sítios do costume que quase todos já visitámos, como Santiago de Compostela, Vigo, Corunha ou Tui. Foi por isso que decidi aproveitar um fim-de-semana para ir conhecer um desses bocadinhos verdes que já andava a despertar a minha curiosidade há algum tempo, e de que só ouvia dizer maravilhas: as Fragas do Eume.

Fragas do Eume
Na margem do rio Eume, no noroeste da Galiza. créditos: Ana C. Borges

Em galego, fraga significa floresta com árvores de diferentes espécies, e neste caso específico estamos a falar de um Parque Natural com mais de 9 mil hectares, praticamente desabitado, com uma das florestas ribeirinhas melhor conservadas e mais virgens da Europa, sobretudo ocupada por carvalhos e castanheiros mas também por freixos, amieiros e teixos, bétulas, medronheiros, azevinhos, loureiros e até mesmo sobreiros, mais de 20 espécies de fetos e (imagine-se!) 200 espécies de líquenes – o que faz com que mesmo no Inverno as fragas ofereçam aos nossos olhos uma variedade infindável de matizes de verde, aliados aos castanhos das folhas que invadem o chão. Se a isto somarmos um rio – o Eume – que aqui, já perto do mar, corre rápido e caudaloso, alimentado por vários outros rios e regos que escorrem pelas encostas e se despencam em pozos e fervenzas, em cujas margens encontramos moinhos de água em ruínas e mosteiros românicos… bom, já estão a imaginar, não estão?

Eu também imaginava que fosse bonito, mas apesar disso não estava preparada para tanta beleza.

Existem quatro pontos de entrada no Parque mas o principal, por ser o mais vistoso, é aquele a que se acede passando por Pontedeume, uma vila costeira das Rías Altas situada entre Corunha e Ferrol. De Pontedeume até ao Centro de Interpretação das Fragas do Eume são apenas 6 quilómetros, mas é o suficiente para a paisagem mudar radicalmente. No Verão e na Semana Santa este acesso ao Parque fica vedado aos carros, sendo disponibilizado um autocarro que faz o transporte entre o Centro e a ponte de Caaveiro, 7 km e meio mais à frente. Na época baixa não há qualquer restrição e os veículos circulam à vontade, mas a verdade é que a melhor maneira de desfrutar do passeio é a pé, por isso deixámos o carro junto ao abrigo de pescadores de Cal Grande e seguimos pela estrada que acompanha o rio.

Apesar da distância, o percurso faz-se bem, pois praticamente não tem inclinações e o piso é asfaltado. A cada curva do caminho vão-se sucedendo os motivos de interesse: uma ponte pênsil aqui, um rápido no rio acolá, letreiros com os nomes arrevesados dos locais de pesca, mais adiante uma casa onde um cão sinaliza a nossa passagem a ladrar. E árvores, muitas árvores, altíssimas algumas delas, outras meio caídas ou até mesmo mortas dentro do rio, árvores com os troncos cobertos de líquenes, ou de musgo, ou de hera. De vez em quando há uma ribeira que se precipita em pequenas cascatas pela encosta abaixo, passando sob a estrada para ir engrossar o Eume. A maioria das árvores são carvalhos e castanheiros e nesta altura do ano estão completamente despidas, o que nos permite nunca deixar de ver o rio durante toda a caminhada. Estamos na floresta, mas rodeados de água – e esta é mais uma das vantagens de viajar no Inverno.

Fragas do Eume
"A melhor maneira de desfrutar do passeio é a pé, por isso deixámos o carro junto ao abrigo de pescadores de Cal Grande e seguimos pela estrada que acompanha o rio", conta a Ana. créditos: Ana C. Borges

No final da estrada, passando a ponte, uma subida de uns oito minutos leva-nos ao Mosteiro de San Xoán de Caaveiro. Convertido em monumento histórico-artístico em 1975, foi finalmente reabilitado (a reabilitação até mereceu um prémio europeu) e abriu ao público em 2006. O acesso é livre e na época alta há visitas guiadas todos os dias, em vários horários. Logo à entrada do conjunto do mosteiro, a antiga Casa do Forno foi adaptada para abrigar os sanitários públicos e, por cima, uma Taverna simpática e acolhedora (mas previnam-se atempadamente com dinheiro, que por ali rede de comunicações é coisa que não há…).

Mosteiro de Caaveiro
Mosteiro de Caaveiro créditos: Ana C. Borges

Os vários edifícios de tamanho modesto que compõem o Mosteiro de Caaveiro são simples na sua traça românica, em pedra granítica cinzenta que os séculos marcaram com diversas tonalidades e já misturada com xisto e outros materiais, fruto das sucessivas reconstruções. Das duas igrejas iniciais hoje só resta uma, a de Santa Isabel, que servia para os enterramentos. O elemento mais chamativo do conjunto é a abside semicircular, bem visível quando subimos para entrar pela Portaria Alta. O despojamento do interior dos edifícios está parcialmente aproveitado com exposições minimalistas sobre o mosteiro e algumas personalidades que a ele estiveram ligadas.

Apesar da simplicidade, o espaço reflecte um encanto especial. Equilibrado numa escarpa rochosa, como que suspenso sobre o rio, frágil na sua quase imaterialidade e na sua exposição aos elementos, é um ninho de águia que nos oferece vistas fabulosas sobre o vale do Eume, tão bonito visto de cima quanto lá em baixo.

O rio Sesín, um afluente do Eume
O rio Sesín, um afluente do Eume créditos: Ana C. Borges

Uma descida empedrada leva-nos depois até ao rio Sesín, um afluente do Eume, transposto por uma antiquíssima ponte em pedra e com as ruínas de um moinho de água mesmo ao lado. Ali o rio desdobra-se em vários cursos de água, cada um escorrendo entre pedras diferentes, ou saltando sobre elas, e nessas pedras nascem árvores e fetos, num cenário quase surreal.

A Senda dos Encomendeiros
A Senda dos Encomendeiros, um trilho na margem do Eume. créditos: Ana C. Borges

Segundo dia

As “aventuras” do segundo dia começaram mais a norte, em Naraío. Não sendo o motivo principal da visita, o castelo foi a primeira paragem. Abandonado no séc. XVII, muitas das suas pedras foram utilizadas como material de construção para casas erguidas nos arredores, e até mesmo para a represa e a central hidroeléctrica construídas junto à sua base, no rio Castro, por isso o que chegou aos nossos dias é pouco mais do que uma ruína deste exemplar de arquitectura militar em estilo gótico do séc. XIV – mas cujas origens remontam muito provavelmente ao séc. II, pelo menos. Do antigo Castelo de Naraío hoje permanecem de pé a Porta de Armas e mais algumas portas, a Torre de Menagem, que é de planta quadrada, restos de três muralhas perimetrais, que em tempos fizeram deste castelo uma fortaleza inconquistável, e mais alguns vestígios arqueológicos.

O antigo Castelo de Naraío
Ruínas do antigo Castelo de Naraío créditos: Ana C. Borges

O que faz deste castelo um dos melhores exemplos da arquitectura defensiva medieval não é portanto o seu bom estado de conservação, nem qualquer originalidade na sua concepção inicial, mas antes a sua situação estratégica e singularidade de implantação, a uns respeitáveis 300 ou mais metros de altura sobre um penhasco rochoso, que nalguns sítios faz mesmo parte dos seus muros. E também a sua adaptação ao meio e à beleza do lugar em que foi erigido, a bonita paisagem natural da zona protegida dos rios Xuvia e Castro.

Mas como vos disse, o castelo não foi a razão maior que nos levou até àquele lugar. Descendo a encosta do lado direito, por um trilho entre o castelo e uma das casas que estão construídas mesmo ao pé, aproximamo-nos do (bastante modesto) edifício branco da central hidro-eléctrica, onde o Castro corre e salta sobre pedras, e passa ao lado de um também já abandonado moinho de água. Antes de chegarmos à estrada que termina junto à central, um atalho leva-nos para a esquerda por entre as árvores, e foi por aí que seguimos. O barulho da água já se ouvia, mas mesmo assim a surpresa foi grande quando finalmente deparámos com a fervenza de Naraío.

A
A fervenza (galego para cascata) de Naraío. créditos: Ana C. Borges

Fervenza, como já devem ter percebido, significa “cascata” em galego. E cascatas é coisa que não falta na Galiza, há-as por todos os lados e de todos os feitios e tamanhos. Deu-se a coincidência de na noite anterior ter chovido este mundo e o outro, a noite toda sem parar, e isso teve consequências – fantásticas, neste caso. A água jorrava em catadupas, milhares de litros de água precipitando-se do alto de seis metros, altura modesta mas ainda assim suficiente para causar um efeito impressionante. Uma jovem que andava a passear os cães e nos acompanhou no trilho até à fervenza disse-nos que no Verão é habitual usarem o lugar como piscina, e mostrou-nos fotos. A diferença é absolutamente inacreditável! Ela própria estava pasmada, vive ali perto e vai muitas vezes à cascata, mas nunca a tinha visto com tanta água. Uma maravilha!

A caminho do destino seguinte, fizemos uma breve paragem em As Pontes de García Rodríguez, habitualmente apenas indicada como As Pontes. Ainda de longe adivinham-se as silhuetas da gigantesca central térmica, operada por uma conhecida empresa espanhola, mesmo à entrada da vila. É a maior do país, e entre os vários e enormes edifícios destaca-se a chaminé, que tem 356 metros de altura e é a construção mais alta de Espanha e a chaminé com mais volume do mundo. Como se este aparato todo não fosse já suficientemente surreal, aninha-se ali mesmo ao lado, qual David junto a Golias e tão escondido que podemos passar na estrada sem dar por ele, o conjunto arquitectónico de Vilavella: três casas abandonadas e semi-recuperadas, parcialmente invadidas pela vegetação, um pequeno espigueiro, um cruzeiro e uma igreja.

A central térmica de Pontes
A central térmica de Pontes, na Corunha, com a sua torre de 356 metros (actualmente a 19ª mais alta do mundo). créditos: Ana C. Borges

A seguir, rumámos a sul em busca de mais uma cascata. A fervenza de As Panceiras, também conhecida como fervenza de Bermui, está bastante escondida e o acesso não está indicado, mas curiosamente não foi muito difícil dar com ela – bastou guiarmo-nos pelo Google Maps, estacionar no local que nos pareceu ser perto, e depois seguir o instinto e o som da água, que nos levou por um pequeno trilho entre áreas vedadas por arame farpado. O Rego das Foxas é um pequeno ribeiro que corre plano num lindíssimo bosque de carvalhos, até ser obrigado a vencer um desnível de 100 metros entre pedra xistosa para chegar ao vale do Eume – e é aqui que se formam várias cascatas em sequência, uma delas com quase 10 metros de altura. Uma vez mais, o facto de ter chovido muito nessa noite proporcionou-nos um belíssimo espectáculo, com a água a cair em borbotões de espuma numa cascata superior, precipitando-se depois numa outra cascata da qual não se consegue ver o fim. O terreno aqui não é fácil e a grande inclinação torna impossível descer mais – mesmo para chegar à parte mais baixa tivemos de ter cuidado para não escorregar, e não houve como não molhar os ténis, já que a água escorria por todos os lados. Mas valeu tanto a pena! Ali sente-se realmente a força e a perfeição da natureza em estado selvagem, e não há como não ficar em êxtase com tanta beleza que nos rodeia.

O Rego das Foxas
créditos: Ana C. Borges

Com o sol já a descer, a última paragem do dia foi para ver ao vivo mais um mosteiro, o de Santa María de Monfero, um dos monumentos católicos mais originais que já vi até hoje. No séc. X era uma ermida dedicada a São Marcos, reconstruída em 1134 e ampliada em estilo românico para se constituir em mosteiro beneditino e mais tarde cisterciense. Com uma dimensão imponente, atingiu grande importância na Galiza e possuiu uma das melhores bibliotecas da região. Uma catástrofe natural destruiu parte do conjunto no séc. XVII, incluindo uma das torres (atingida por um raio), após o que a igreja foi reconstruída com uma originalíssima fachada barroca, que inclui colunas com capitéis coríntios e um padrão em xadrez desenhado com granito e xisto. O mosteiro foi oficialmente extinto no séc. XIX e a maior parte dos seus edifícios está hoje em ruínas, apesar de uma intervenção entre 2009 e 2011 que se destinava a apoiar a reutilização das instalações como hotel e spa – projecto entretanto abandonado. Apenas a igreja continua a funcionar esporadicamente, pois o local é muito procurado durante o Verão para festas e romarias.

Mosteiro de Santa María de Monfero
Mosteiro de Santa María de Monfero créditos: Ana C. Borges

Esta minha breve (mas muito preenchida!) incursão em terras galegas deixou-me positivamente encantada, mas ao mesmo tempo com água na boca: encantada porque superou as minhas expectativas e gostei muito mais do que estava à espera; e a ansiar por mais, como sempre me acontece quando não tenho vontade de me vir embora de algum lugar.

A Ana C. Borges é a autora do blogue Viajar porque sim, onde uma versão deste artigo foi publicada originalmente, e escreve segundo as normas do antigo Acordo Ortográfico.