Chamar caminhos de cabras aos trilhos que dão acesso às melhores praias da ilha do Príncipe é ser simpática. Até a sport wagon com pneus tamanho XL conduzida pelo Vado, um dos guias mais experientes da ilha, tem dificuldade em percorrer os poucos quilómetros de piso meio lamacento, cheio de buracos e com pedras gigantes a despontarem do solo que leva à praia Boi. Curto em distância mas longo em minutos, o percurso mói os ossos e os músculos, chocalhados sem piedade e ininterruptamente até ao final, e só o facto de ser feito dentro de uma floresta magnífica mitiga um pouco o incómodo: os olhos vão entretidos a admirar árvores desconhecidas, tão altas que apenas deixam passar uns ténues raios de sol. Isso e a praia no final do caminho. Areia fina e clara debruada a palmeiras, deserta; mar tranquilo em dégradé de azuis; sol brilhante, água morna. Perfeita!
Tal como para as suas praias, o mote para a ilha do Príncipe podia ser este: não é fácil lá chegar, mas vale muito a pena. É preciso estar no Aeroporto de São Tomé tão cedo como se fôssemos para uma viagem internacional, não é possível levar mais do que 15 kg de bagagem de porão, e a viagem total de 40 minutos (dos quais apenas 25 em voo) é feita numa avioneta que só leva 19 passageiros, com pouco espaço, pouco insonorizada e pouco fresca.
À chegada, meras dezenas de metros nos separam do pequeno edifício do aeródromo, pintado de amarelo-vivo. Depois aguardamos a chegada das malas numa saleta com porta aberta para o exterior, a fazer lembrar as salas de espera de antigamente das estações de comboio. Contrariando o frenesim da cidade de São Tomé que deixámos pouco antes, há uma atmosfera geral de tranquilidade, e até os ruídos do exterior soam abafados. Estranha-se esta calma, que contudo não é surpreendente se pensarmos que a ilha tem pouco mais de 9 mil habitantes (em contraste com os 80 mil da capital do país).
Lá fora, uma mão cheia de guias aguarda a nossa saída, cada um com o nome do seu cliente escrito numa folha branca. Os turistas que chegam desta vez são poucos, a maioria dos passageiros são gente da terra. Sorridente, o Vado dá-nos as boas vindas e leva-nos ao carro. A estrada até Santo António, capital do Príncipe, é asfaltada e está em bom estado, e em coisa de 10 minutos estamos no restaurante da Residencial Mira Rio para matar a fome em frente a uma omelete – um lanche reforçado para substituir o almoço que estava em falta por causa da viagem de avião. Fazendo jus ao nome, o restaurante tem varanda e vista sobre o rio Papagaio, que nasce no pico homónimo, um dos mais altos da ilha.
A cidade
Santo António é cidade com dimensão de vila e ambiente de aldeia. Fundada em inícios do século XVI, chegou a ser capital da colónia portuguesa de São Tomé e Príncipe, entre 1753 e 1852, antes de a cana-de-açúcar como produção principal ter sido substituída pela de cacau e café. Com ruas arejadas e rectilíneas na área junto à baía, onde ainda se mantêm de pé vários edifícios da época colonial, em diversos estados de conservação, o casario vai-se tornando mais miúdo e irregular à medida que seguimos para sul. Nas casas baixas de cores pastel, a alvenaria alterna com a madeira e a chapa ondulada, e quando deixamos o centro da cidade os passeios são aos poucos substituídos por meras bermas, que a vegetação tenta engolir. Há palmeiras gigantescas e muitas outras árvores e arbustos, a darem uma impressão visual de frescura mesmo quando o mercúrio sobe nos termómetros. Não há qualquer sintoma de aridez nesta ilha e a água nunca falta. Além disso, garante o Vado, toda a água da cidade é tratada e potável, pode por isso ser bebida directamente da torneira. Ainda assim, cingimo-nos à água engarrafada – vale mais prevenir, que o nosso sistema digestivo europeu já se sente sobrecarregado quanto baste pelos temperos generosos da comida local.
Não se pode dizer que Santo António tenha uma arquitectura extraordinária. Nota-se, isso sim, alguma preocupação em manter a cidade limpa (até há caixotes destinados à separação de lixos para reciclagem) e cuidada. Olhando para algumas casas, com varandas em ferro forjado, cornijas sobre as janelas e beirais nos telhados, podemos até pensar que estamos em Portugal. No centro da cidade há meia dúzia de edifícios que se destacam, seja pelo aspecto recente, como o edifício do BISTP (o principal Banco do país); pela cor, como a casa colonial que abriga a capitania, pintada de azul céu e com um friso de bóias e âncoras, ou o edifício que ostenta o emblema do Sporting Clube de Portugal, sem vidros nem finalidade aparente, mas primorosamente pintado de verde e branco; ou pela beleza dos seus elementos decorativos, como a casa oficial da presidência, e que é sem dúvida o edifício mais bonito de todos: exterior em ripas de madeira pintadas de cinza-claro, um alpendre em toda a volta, friso de metal trabalhado a rematar o telhado, e com uma magnífica palmeira-do-viajante plantada num dos vértices, a fazer as vezes de sentinela.
Há uma igreja católica, dedicada a Nossa Senhora da Conceição, simples e com uma única torre. Parece muito antiga, talvez por estar em obras, mas data apenas de 1943. Tal como em todo o país, a religião é pedra basilar para as gentes do Príncipe e o catolicismo é predominante (mais de 70% da população de São Tomé e Príncipe), embora se note alguma proliferação de outras confissões ditas evangélicas, com locais de culto numa das ruas principais. Surpreendente para mim foi descobrir que no Príncipe se festejam os Santos Populares, a sério e “à antiga”.
Na noite de São João, uma das que passei na ilha, uma marcha popular alegre e muito participada, com marchantes vestidos a rigor, percorreu as ruas de Santo António durante quase duas horas, mostrando as coreografias ensaiadas ao som de canções tradicionais. Uma animação, para a qual grande parte do resto da população da cidade também contribuiu, seguindo o cortejo sem nunca esmorecer. No final, saltou-se a fogueira na praceta em frente à igreja – algo a que eu já não assistia há sei lá quantos anos, e que me trouxe memórias da infância.
No Príncipe as tradições são acarinhadas e respeitadas. Ao pôr-do-sol do primeiro dia, passámos por acaso pelo jardim da Praça Marcelo da Veiga, onde fica o Palácio do Governo. A bandeira do país estava a ser arreada à frente do Palácio, com cerimonial militar ao som do cornetim. De imediato, o nosso guia estacou e colocou a mão no coração. Não arredou pé enquanto não terminou a cerimónia, e deu uma descompostura a um adolescente que passava apressado, obrigando-o a parar também. Num país em que cerca de 40% da população tem menos de 15 anos (e apenas 7% tem mais de 55), são cada vez mais os jovens que tentam (e têm de) fazer avançar São Tomé e Príncipe. E se para muitos o maior anseio é virem para Portugal, sobretudo para estudarem, há outros que sonham com um país mais desenvolvido e menos pobre, e querem contribuir para isso.
As praias
Que o maior trunfo da ilha do Príncipe é a sua beleza natural e consequente capacidade de atrair turismo, isso está à vista. Dos 142 km2 da sua área, a maior parte está coberta de floresta tropical húmida, sobretudo a região sul, que é bastante acidentada e por isso difícil de visitar. É aqui que se encontra o Pico do Príncipe, cujos 948 metros fazem dele o cume mais alto da ilha, e é aqui também que despontam da floresta grandes torres de fonólito, uma rocha vulcânica algo rara, que dão à paisagem um certo ar de mundo jurássico. Inversamente proporcional ao seu tamanho, a idade geológica do Príncipe está estimada em 31 milhões de anos, tempo suficiente para nela se desenvolverem imensas espécies vegetais e animais, tanto no solo como no mar – e esta é uma das razões pelas quais a ilha do Príncipe foi categorizada pela UNESCO em 2012 como Reserva da Biosfera.
Das cerca de duas dúzias de praias que a ilha tem, nem todas são acessíveis, e raras são as que é fácil visitar. O percurso é quase sempre por caminhos em mau estado, que implicam a deslocação num todo-o-terreno, e a constante ameaça de se ficar atolado na lama ou estragar alguma parte essencial do carro. Uma excepção é a praia Bom Bom, no norte, cujo acesso em estrada de terra batida apresenta menos dificuldades do que o normal, talvez por não ser em declive, e certamente por servir o conhecido resort que tem o mesmo nome.
A praia Bom Bom é na verdade uma praia dupla, com uma grande extensão de areia de cada um dos lados do istmo que liga ao ilhéu. A icónica e longa ponte de madeira que possibilitaria visitar a ilhota está agora interditada (por falta de manutenção, dizem-nos) mas continua a ser uma atracção na paisagem. Virada a noroeste, a meia-lua de areia alaranjada que fica do seu lado esquerdo é local de excepção para passar um final de tarde, aproveitando os raios menos inclementes do sol-pôr – sendo que nestas latitudes, quase em cima da linha do Equador (que passa no ilhéu das Rolas, cerca de 200 quilómetros a su-sudoeste), a escuridão chega invariavelmente menos de seis horas depois do meio-dia.
Há quem diga que a praia Boi é a melhor da ilha do Príncipe, e certamente merecerá o título. Como não é fácil chegar lá, o mais provável é tê-la toda por nossa conta, e isso decerto que contribui para a sua fama. Mas há outras igualmente bonitas e recomendáveis, como a praia Macaco ou a mais célebre praia Banana, onde em 1991 foi filmado o anúncio de um rum famoso. Vê-la do miradouro que fica na Roça Belo Monte é a primeira abordagem que aconselho. Dali vê-se bem o formato da praia, e percebe-se o porquê do nome; em jeito de brinde, desfrutamos de uma magnífica paisagem em tons de verde e azul. Lá em baixo, a vista é mais rasa mas igualmente paradisíaca. Sol aberto, mar chão, algumas rochas escuras, um ilhéu mais ao fundo. O ar está a uns simpáticos 28°C, e a água imita-o. Há uma brisa ligeira, o conforto da sombra das palmeiras, e um sossego quase total. O cliché da praia paradisíaca, que por coincidência é o meu conceito de praia ideal. A vontade de sair dali é zero.
Para uma experiência menos “postal ilustrado”, há que ir até à praia Abade. O entorno é igualmente idílico, uma praia límpida e sem ondulação numa baía quase fechada e debruada a verde. À volta alonga-se uma aldeia piscatória, pequena, com casas toscas feitas com tábuas de madeira e telhado de chapa ondulada, algumas pintadas de cores vivas. Na areia não há toalhas de praia nem banhistas, mas sim miúdos que brincam e canoas que descansam, umas feitas de tronco de árvore, outras mais modernas, com motor reluzente. E na água haverá talvez apenas um pescador, impelindo o seu barco à força de braços e de uma pagaia.
As roças
A ilha do Príncipe foi descoberta por Pêro Escobar a 17 de Janeiro de 1471, apenas 27 dias depois da sua irmã São Tomé. O seu primeiro nome foi Santo Antão, e o primeiro produto ali explorado a cana-de-açúcar. Os impostos sobre a produção de açúcar na ilha eram pagos ao Príncipe de Portugal, Afonso, filho e herdeiro de D. João II, razão pela qual o nome da ilha acabou por ser mudado em 1502. Os engenhos de açúcar foram introduzidos em fins do século XV por Álvaro de Caminha, a quem a coroa portuguesa concedeu a terra. A partir do início do século XIX, o açúcar foi sendo gradualmente substituído pelo café e sobretudo pelo cacau, cultivados nas roças que constituíram desde sempre a base da vida económica e social da ilha.
Após a independência de São Tomé e Príncipe em 12 de Julho de 1975, poucas foram as roças que mantiveram as suas produções. Algumas transformaram-se em aldeias, outras são hoje apenas ruínas, outras ainda foram convertidas, em tempos mais recentes, em empreendimentos turísticos de luxo. Apenas duas são actualmente exploradas para a produção de café e cacau: A Roça Paciência, que pertence ao grupo HBD, e a Roça Terreiro Velho, que abastece a fábrica Claudio Corallo.
Situada a poucos quilómetros de Santo António, a Roça Porto Real (que em tempos teve o nome de Roça Esperança) é um dos exemplos mais flagrantes do abandono a que a maior parte destas grandes estruturas produtivas foram votadas. Foi uma das maiores roças do Príncipe e chegou a ter outras oito, mais pequenas, na sua dependência. Roça-terreiro típica, com um espaço central amplo, quadrado ou rectangular, rodeado por diversas áreas edificadas – oficinas, armazéns e edifícios fabris e administrativos, sanzalas (onde viviam os trabalhadores), capela, hospital, escola e cozinhas, e a casa principal – encontra-se hoje em ruínas, com a maior parte dos edifícios engolidos pela vegetação. Da grandeza anterior destes fantasmas do passado só nos apercebemos pela enorme escadaria que ainda é visível, e que nos leva a paredes de pedra esverdeada por musgos, com aberturas por onde irrompem fetos e ramagens folhosas, troncos e raízes de árvores que se enrolam em volta dos muros como tentáculos de polvo. Mais à frente, ao longo da estrada, os edifícios da antiga sanzala continuam a ser habitados, à mistura com casinhotos de madeira que foram entretanto construídos.
Diferente é a história da Roça Sundy. Adquirida há cerca de uma dezena de anos pelo grupo HBD, cujo líder é o sul-africano Mark Shuttleworth (sendo que HBD neste caso são as iniciais de Here Be Dragons, expressão usada em tempos idos para designar territórios inexplorados do nosso planeta), a roça tem vindo a ser reconstruída e transformada numa unidade de alojamento turístico de gama alta, apesar de alguns edifícios limítrofes ainda estarem por recuperar. A renovação exterior sóbria disfarça o interior mais luxuoso. Há uma loja, onde são vendidos os produtos orgânicos feitos com o cacau e outros frutos e plantas cultivados na Roça Paciência. Aberto a visitas está também o Espaço Ciência Sundy, um pequeno museu que expõe maquinaria antigamente usada na roça e celebra o facto de ter sido aqui que, em 1919, um grupo de astrónomos ingleses liderados por Sir Arthur Eddington levou a cabo a experiência que deu como provada, pela primeira vez, a Teoria da Relatividade Geral de Einstein. A HBD Príncipe também explora o Sundy Praia e o Bom Bom (com reabertura prevista para 2023), e os objectivos que apregoam são o desenvolvimento sustentável da ilha e a conservação da Reserva da Biosfera.
Outra história feliz é a da Roça Belo Monte. Antiga plantação de cacau e café e objecto de recuperação primorosa, agora funciona apenas como hotel (também de luxo). Apesar disso, as instalações podem ser visitadas por qualquer pessoa, e é um lugar de excelência para ir tomar um chá ou uma bebida fresca, por exemplo. Visitável é igualmente o seu museu, que ilustra a história e a cultura da ilha, e o miradouro sobre a Praia Banana é de acesso livre.
A entrada para a área principal do complexo é feita por um portão icónico, com torreões e um sino, guardado por dois canhões cuja ferrugem atesta a sua antiguidade. Nos jardins, muito bem cuidados, nem sequer falta um tabuleiro de xadrez gigante, com as respectivas peças bicolores, e um banco-baloiço circular pendurado nos ramos de uma árvore, compridos como braços de um colosso. Quanto ao interior, é o epítome do requinte discreto, clássico sem ser pesado, ligeiros toques rústicos misturados com outros mais modernos. O Monte Belo faz parte da Africa’s Eden, uma organização que contribui para a preservação da natureza e desenvolve actividades turísticas sob o mote “O turismo paga a conservação”.
Menos popular e de mais difícil acesso do que São Tomé, a ilha do Príncipe é frequentemente ignorada por quem visita o país – sobretudo, não tenho qualquer dúvida, devido ao preço exorbitante (para uma viagem tão curta) das passagens aéreas entre as ilhas, e também ao facto de o custo de vida ser mais elevado do que na ilha principal. Há também a ideia de que no Príncipe é tudo mais rudimentar e básico, e portanto menos “confortável” ou “civilizado”. Se a presunção no que toca à parte financeira é correcta, em relação ao resto posso afirmar que vim de lá com uma percepção completamente oposta. Apesar de todas as limitações existentes e da sua extrema dependência de São Tomé, a ilha do Príncipe está a trilhar um caminho rumo ao futuro bem coerente e esclarecido, e a qualidade dos serviços que oferece é superior à impressão que é habitualmente difundida sobre a ilha. Há já bastante oferta de alojamento a preços razoáveis, os restaurantes são mais que muitos, alguns já modernizados, e o atendimento é impecável, mesmo que por vezes um pouco demorado (porque é tudo feito na hora). Sem a sofisticação plasticizada de tantos destinos turísticos apregoados de paradisíacos, o Príncipe é um verdadeiro oásis de simplicidade, onde é possível uma genuína comunhão com a natureza pouco delapidada pela mão humana, e com a essência de um povo que tem orgulho na sua cultura e respeito pelas maravilhas do lugar onde vive.
A Ana é a autora do blogue Viajar porque sim, onde uma versão deste artigo foi publicada originalmente, e escreve segundo as normas do antigo Acordo Ortográfico.
Comentários