O João Sintra levou 5 anos a sonhar com o Pacific Crest Trail (PCT), na costa oeste dos EUA. No final de maio, fez-se ao caminho, e tem sido fascinante acompanhar o seu progresso através do Instagram, onde o enfermeiro de 33 anos tem se esforçado por fazer um resumo de cada dia a avançar pelas florestas, montanhas e desertos do mítico trilho. Os desafios físicos e logísticos são evidentes (a começar pela alarmante escassez de pontos de água ao longo de certas partes do trilho), assim como o seu entusiasmo com as paisagens e pessoas com que já se cruzou nesta aventura, ligada a uma campanha solidária que reverte para a Liga Portuguesa Contra o Cancro (e para a qual já conseguiu angariar mais de 500 euros).
No final da semana passada, quando já tinha completado 1/5 da sua enorme viagem a pé, pedimos ao João que nos falasse sobre o seu estado de espírito, agora que está a concretizar o seu sonho. Transcrevemos as suas respostas abaixo.
Para começar, podes dizer-nos em que ponto da tua longa caminhada estás, e se corresponde ao que tinhas planeado até aqui?
João Sintra: Acabei de completar parte sul da Califórnia. Cheguei agora à pequena cidade de Tehachapi, ou seja equivale a 1/5 percorrido do Pacific Crest Trail. Eu e os meus companheiros de trilho fizemos um dia zero aqui, para tentar restabelecer todas as energias, beber e comer o máximo que conseguirmos e vamos retomar o caminho ainda hoje, em direção às sierras, que é a próxima grande secção.
O caminho não vai a lado nenhum. Não há problema nenhum de termos de parar se tivermos que parar ou reconhecer que temos de fazer mais paragens.
Se pudesses mudar alguma coisa ao nível do planeamento, agora que estás aí, o que seria?
Já são 911kms percorridos até agora e estou muito contente com aquilo que tem sido feito e como foi feito. Está a correr como o planeado, sendo que é para isso que os planos servem, para irmos mais seguros, mas também para ser alterados. Podia ter trazido mais algumas coisas, e outras poderia ter deixado em casa, mas a meio do caminho é que vamos percebendo as nossas necessidades.
Acho muito difícil que alguma coisa pudesse ter sido feita de forma diferente. Gostaria de ter feito muito mais quilómetros diários do que aquilo que fiz até agora, mas não há uma discrepância assim tão grande de quilometragem, tendo em conta o que planeei. Desse ponto de vista, estou mais que satisfeito.
É importante ouvirmos o nosso corpo e sabermos as nossas limitações. O caminho não vai a lado nenhum. Não há problema nenhum de termos de parar se tivermos que parar ou reconhecer que temos de fazer mais paragens. E isso tem sido feito com muita ponderação e pragmatismo, e é assim que devemos continuar.
Consegues indicar quais têm sido as maiores dificuldades e surpresas positivas da caminhada?
É um assunto que dá pano para mangas (risos). A nível de dificuldades, aquilo que mais fazemos no caminho é pensar e isto é uma luta diária em vários aspetos, mas o principal é nós contra nós próprios e começamos a pensar na fauna, na flora, no próprio caminho em si, nas condições, se é um caminho estreito, se é um caminho largo, se estamos à beira de uma ravina, se alguma coisa pode correr mal e essa batalha tem sido a mais complicada de travar.
o ponto mais positivo é todas as pessoas com quem me tenho cruzado.
Obviamente que isto é um caminho oficial e tem manutenção anual, até porque há bastantes pessoas de todas as parte do mundo a percorrê-lo, mas em 4 mil e alguns quilómetros, é difícil manter a integridade total de todo o caminho, até porque tem havido tornados, nevascas, condições meteorológicas muito adversas e incêndios. Ou seja, por mais que se tente manter a integridade do caminho, nem sempre é fácil. E há troncos para saltar ou para passar por baixo, há rochas para subir, há gravilha, etc. Tudo isto contribui para que seja um desafio não só em termos físicos mas em termos psicológicos.
E depois ainda há a fauna e flora, todos os animais que possam ser potencialmente perigosos para nós, sendo que muitos deles nós não os conseguimos identificar à vista desarmada, porque têm a capacidade para se camuflarem. Algumas plantas e alguns arbustos podem causar reações no nosso corpo adversas, pelo que são tudo fatores que temos de ter conta nas nossas progressões.
A nível positivo, tenho que dizer tudo. Desde as vistas, a experiência pessoal, o conhecimento pessoal e tudo aquilo que já aprendi, coisas que eu nunca imaginei fazer ou nunca tinha feito, que fui obrigado a fazer ou por necessidade ou por iniciativa próprio. Acho que o principal ponto positivo seria as pessoas. Todas as pessoas com quem me tenho cruzado têm-me ajudado muito, seja por ações ou simplesmente por me darem uma palavra de conforto. Os próprios amigos que estão a caminhar comigo (dois irmãos da Suíça), têm sido irmãos também para mim a nível da caminhada e sem dúvida que o ponto mais positivo é todas as pessoas com quem me tenho cruzado.
se o caminho nos oferece coisas adversas é por alguma razão e tenho aprendido isso ao longo de todo este percurso
Nem sempre é fácil saber contornar as coisas adversas que o caminho nos oferece. Mas se o caminho nos oferece coisas adversas é por alguma razão e tenho aprendido isso ao longo de todo este percurso. Ou seja, se algo não vai de acordo com o planeado, é por alguma razão: ou para veres um pôr-do-sol esplendido ou para veres um céu estrelado ou para te cruzares com as pessoas X ou Y e temos de saber aproveitar todas as adversidades que o caminho nos oferece. E traduzi-las em coisas positivas.
Quando te entrevistámos, em abril, falámos sobre a preparação para passar quatro meses a caminhar sozinho, e está visto que a tua experiência do PCT mostra que é uma aventura partilhada. É uma surpresa boa ou algo com que já contavas?
É uma aventura partilhada e nunca foi minha intenção fazê-la, de todo, completamente sozinho. Obviamente que tive um grande período sozinho. Agora estou um grande período acompanhado. Ninguém me garante que não vá voltar a estar outros períodos sozinho, mas já não está nos meus horizontes. Partilhamos um bocadinho de tudo, dos gostos, das intenções, da forma de planear a caminhada, portanto conto continuar acompanhado por estes dois irmãos suíços.
É uma experiência muito mais positiva quando podemos partilhar sentimentos, coisas de que temos receio e ouvir o outro lado, das outras pessoas, esses mesmos receios, ou ambições, coisas que sirvam para o planeamento. Tem sido positivo. É muito gratificante podermos conviver com pessoas diferentes e trabalhar para um objetivo comum.
A surpresa é boa, como já disse, e é uma coisa com a qual já contava. Se calhar, não contava tão cedo arranjar um grupo, embora pequeno, tão coeso e tão forte, porque pertencemos ao grupo de hikers off-season (caminhantes fora de época), de começo mais tardio, mas tem sido impecável a experiência.
Em relação à experiência sozinho, também foi fundamental para me perceber a mim próprio, para descobrir alguns limites, para descobrir algumas sensibilidades, para exorcizar algumas coisas. Desfrutei muito enquanto estive sozinho e também foi dos momentos em que conheci mais pessoas e estou grato por ter tido essa oportunidade. Não sei se vou voltar a caminhar no futuro sozinho ou não, mas, de momento, é uma coisa que não está no meu pensamento. Aqui temos de viver dia a dia, essa é outra coisa que temos de aprender. Somos nómadas neste momento, vivemos o dia a dia. Adversidades podem acontecer e de hoje para amanhã posso estar sozinho outra vez, mas é o que é. Tenho que aceitar e continuar.
Podem seguir o progresso do João através da sua página no Instagram e no Facebook. A sua caminhada está ligada a uma campanha de angariação de fundos que beneficia diretamente a Liga Portuguesa Contra o Cancro (encontram os dados MBWay nas páginas acima).
Comentários