Por: João Damião Almeida

As cidades em que acordei no primeiro e no último dia são muito diferentes. Sendo elas a mesma, ao mesmo tempo não o são, qual navio de Teseu. Mudou ela, eu com ela e a nossa relação.

A primeira vez em que acordei em Arusha estava num hotel e tinha dormido pouco com a antecipação de quatro dias de safari que me esperavam. No dia anterior já tinha chegado à cidade de noite e foi portanto apenas nessa manhã que, ao sair à rua, me deixei surpreender pela imponência do monte Meru, um vulcão ativo enorme e com forma triangular muito desenhada que é o monumento (natural) mais icónico da cidade.

Uma das dinâmicas indissociáveis de Arusha é o turismo. Capital mundial dos safaris, é a cidade onde chegam diariamente viajantes em voos diretos de três continentes, que enchem hotéis de luxo e hósteis para daí saírem para os parques naturais mais célebres da Tanzânia e uns dias depois voar novamente com destino a Zanzibar ou outro centro turístico da região.

Ao passear em Arusha, é possível ver os jipes de oito lugares e teto recolhível, às dezenas, cedo de manhã ou ao fim da tarde. Conforme a altura do dia, os turistas, lá dentro, vão em fases diferentes da melhor safari (safari é também “viagem” em Swahili) das suas vidas e foi também num desses que saímos na primeira manhã em que acordei em Arusha e num desses que voltámos quatro dias depois.

Para um mzungu ("branco", ou mais propriamente estrangeiro), passear pelas ruas de Arusha no seu pouco tempo de passagem é vaguear pelas ruas agitadas do centro, experimentar ugali e chips chicken numa das incontáveis vitrines da cidade, é visitar o mercado Maasai ou o museu nacional de história natural. É ser recebido a cada cem metros com um "Karibu" (“Bem-vindo”) e abordado a outros duzentos para comprar excursões, panamás ou pulseiras de missangas.

Arusha: o efeito posição em série nesta cidade do norte da Tanzânia
créditos: Projeto Prá Frente

Para quem tem mais uns dias (e uns trocos) para gastar, subir o monte Meru não é menos desafiante que subir o seu primo (setenta-quilómetros-)afastado Kilimanjaro. O Meru, com os seus 4566 metros de altura, é conhecido pelos trilhos vertiginosos e por oferecer vistas do outro mundo para as planícies e montanhas à sua volta.

Arusha está próxima do centro geométrico dos países do Este Africano e é também por isso um centro diplomático internacional. Mesmo que uma passagem curta pela cidade não coincida com nenhum evento na cidade, pode ser suficiente para notar nela edifícios como a sede da Comunidade da África Oriental ou o antigo Tribunal Penal Internacional para o Rwanda.

Não sei quantas manhãs é necessário acordar numa cidade para se ter vivido nela mas sinto que podemos bem tê-las vivido a todas.

Na última manhã em que acordo em Arusha, estou numa casa em Njiro, a cinco quilómetros do centro. Depois de um banho (de balde), saio à rua para um mtori, que se tornou o meu pequeno-almoço favorito. À saída, cumprimento a merceeira da frente com um "Mambo vipi!" (“Como está?”) enquanto olho o chão para não pisar os galos que me fizeram acordar. É o dia das despedidas: da cidade, do centro onde estive a trabalhar e do meu amigo, anfitrião nessas semanas, que me acolheram.

Nesse mês estivemos a trabalhar num centro de inovação social. Parece haver uma grande consciência social nestas cidades da região, onde não apenas as ONGs internacionais se multiplicam, mas também as instituições de inovação social e comunitária e os centros educativos. Mais ainda, parece haver uma cultura individual e institucional de integrar a ação social na missão e nas rotinas, que me parece poder ser exemplo para outras zonas do globo.

Nas últimas semanas, a Arusha onde vivi foi mais rural, a um passo mais lento, mais bairrista. A pé e num raio de 15 minutos, tinha o trabalho, mercearias para comprar legumes e ovos, talhos e peixarias, barbeiro, restaurantes de 1 euro e restaurantes de 10, supermercados e até um centro comercial.

Aqui, o dia-a-dia é ditado pelo clima e não vale muito a pena tentar contrariar. Nos meses das chuvas, o sol abrasador dá lugar a um céu encoberto a maior parte do dia e não é incomum chover torrencialmente por duas ou três horas a fio. Várias vezes isto significa cortes de energia que duram longas horas em que o equipamento eletrónico e o wi-fi a que se costumava recorrer (preciosidade rara deste restaurante ou daquele hotel) ficam naturalmente condicionados.

Arusha: o efeito posição em série nesta cidade do norte da Tanzânia
créditos: Projeto Prá Frente

A Arusha que vim a descobrir está mais próxima das rotinas locais e das rotinas dos wazungu expatriados. É uma Arusha que encontra sempre palavras novas para desejar um bom dia, uma Arusha de mercados locais que vendem udongo (argila comestível) e plantas medicinais, do género musical bongoflava (literalmente “sabor tanzaniano”) a passar em qualquer rádio, de corridas à sexta-feira pelas paisagens vulcânicas do Meru, dos caóticos Dala Dala (autocarros) e Boda Boda (táxi-mota). É a Arusha que cozinha em casa pilau ou chips mayai, que bebe chá masala com leite e que sabe onde melhor se come a cada dia da semana. É também a Arusha que à noite teima em não dormir, com os seus bares de karaoke, salas de jogo e discotecas, mas acima de tudo bares a céu aberto, onde se bebe, se dança e se vê liga inglesa ou o campeonato local.

Arusha
créditos: Projeto Prá Frente

O efeito posição em série é um fenómeno psicológico que dita que o início e o fim deste artigo serão o que a maioria reterá para a posterioridade. Se o leitor apenas for lembrar a explicação introdutória deste efeito e outro assunto que agora enuncie, que esse seja sobre a dinâmica mutante e complexa de uma (qualquer) cidade que nunca pára de se conhecer. E como o português que lá acorda, na última noite em que acorda em Arusha, sai tão mais rico por a ter experimentado.

Projeto Prá frente

O Projeto Prá Frente foi criado por dois jovens engenheiros, com a intenção de conhecer (e partilhar) uma perspetiva completa do Sudeste Africano, focando-se não só no seu património deslumbrante, mas também nas suas pessoas e naquilo que tem para oferecer para o futuro.

Para saber mais siga o Instagram: @projeto_prafrente