Bilhete-postal enviado por Sara Brandão e André Pires, viajantes e autores do blogue Go Meet Share

Para nós, Sara e André, foi há pouco mais de três meses que enchemos as nossas malas com o indispensável e fechámos a porta de casa. Virámos costas ao nosso apartamento em Lisboa, à nossa precoce mas desafiante carreira, despedimo-nos dos pais, amigos e família e, a 17 outubro de 2017, fomos em busca do desconhecido e do diferente.

Cem dias depois colecionámos seis carimbos nos respetivos passaportes, quarenta e quatro camas diferentes, treze voos, treze autocarros, dez comboios, três motas, dois hidroaviões, dois ferrys, dois barcos, uma quantidade incomensurável de tuk-tuks, triciclos, carroças, táxis e uma infinidade de pessoas, sorrisos e histórias.

Hoje, já com algumas cicatrizes eternizadas na alma, podemos dar como certo o caminho que trilhámos. Muito mais que as praias paradisíacas, os cenários extasiantes do nascer e pôr do sol, as montanhas e trekkings de cortar a respiração, o caos das grandes metrópoles asiáticas, as diferentes culturas, sabores e imagens, foram e são as pessoas com quem nos cruzámos que nos animam a continuar nesta aventura de mochila às costas.

Como seres humanos, somos em grande parte a soma das pessoas que se cruzam connosco, das experiências e vivências por que passamos. Não obstante, a nossa realidade é mais complexa do que os fatores exteriores a nós mesmos. A atitude e a maneira com que lidamos com os nossos problemas, sucessos e vivências determina a nossa percepção muito própria da nossa realidade. Aquilo que contaremos nos parágrafos seguintes transmite exatamente isso.

Em meados de agosto de 2017, ainda antes de começarmos esta aventura, o acaso e o improvável bateu-nos à porta. No nosso último dia de uma visita a Roma e enquanto observávamos a diversidade de culturas, olhares e pessoas que deambulavam em frente a um dos maiores símbolos do Cristianismo, a Basílica de São Pedro, vislumbrámos três figuras, que se distinguiam de forma especial pela cor e pela aura. Três monges budistas percorriam a praça principal, cobertos pelos seus trajes típicos de tons alaranjados. Por razões circunstanciais acabámos por ter uma breve mas crucial interação com um deles.

Anunciámos então a nossa intenção de viajar pela Ásia e trocámos contatos e promessas mútuas de visita e de recepção no seu país natal, o Sri Lanka. Uma vez estabilizado o programa inicial da nossa viagem, foi acordado que, a 15 de dezembro 2017, nos encontraríamos na sua terra Natal, Colombo, no Sri Lanka.

Quando aí chegámos na data prevista, o André estava doente. De acordo com o diagnóstico telefónico que tinha sido feito a partir de Portugal, teria que ser submetido a uma ligeira cirurgia. Tivemos que alertar quem nos iria receber que, por um infortúnio inesperado, teríamos que cancelar os compromissos previamente assumidos. Assim, sugerimos adiar por tempo indeterminado aquela oportunidade de ver e experienciar o país do nosso anfitrião pelos seus olhos. Porém, o que se sucedeu após este contato estava para além da nossa imaginação.

O monge budista rapidamente alterou os seus planos e, em menos de três horas, encaminhou-nos para dois hospitais, onde fomos observados por quatro especialistas, cujo diagnóstico foi unânime. Era necessária uma pequena intervenção cirúrgica. Por isso, o André foi imediatamente internado, operado e pernoitou no hospital.

Para permitir a recuperação pós-operatória, o nosso Guardião apoiou de forma muito próxima os nossos últimos cinco dias no país. Ofereceu-nos casa, comida, transporte, companhia, amizade, sem que nunca, nem por uma vez, tenha cobrado ou feito algum reparo pelo inconveniente, ou pela desilusão de não ter podido mostrar-nos o seu País como seguramente gostaria.

Não sabemos ao certo se existe uma definição precisa e concreta para bondade pura e espontânea. No entanto, se existir, encontrámo-la, sob a forma humana, no Sri Lanka, num homem que se veste de laranja e coloca a vida dos outros à frente da sua, sem nunca perguntar ou pedir algo em troca.

Acreditamos que o seu comportamento humanitário é uma lufada de ar fresco no meio de um mundo cada vez mais materialista. São estes exemplos que devem definir a nossa existência e são com eles que devemos aspirar moldar o que nos rodeia. Na realidade, a bondade espontânea como aquela que tivemos a felicidade de vivenciar torna-nos mais humanos e conecta-nos uns aos outros.

Tivemos a sorte de ter o apoio constante daquela figura humana que se veste em tons alaranjados. Ainda que suportado na nossa capacidade de adaptação a uma situação de enorme stress e menos positiva, foi ele o elemento-chave que nos ajudou a transformar um momento difícil que começou com a necessidade de uma operação urgente num país que nos era totalmente estranho, numa das maiores aprendizagens da nossa vida.

Ser operado no Sri Lanka foi por isso uma das melhores coisas que nos aconteceu nestes cem dias, apenas porque a bondade humana ligou o Vaticano a um monge budista!