Esta é uma das 52 cozinhas solidárias a funcionar no Brasil, impulsionadas pela Gastromotiva, associação que forma pessoas sem recursos em profissionais de gastronomia, com a missão de encher não apenas a barriga, mas de satisfazer o paladar e dar uma dose de alegria a quem mais precisa.

"Por que o pobre não vai comer bem?", questiona-se esta mulher negra, de 45 anos, enquanto serve no prato penne e molho de tomate temperado com zatar (mistura de especiarias) oriental.

É preciso subir uma escadaria precária para chegar à sua pequena casa, no alto do morro da Rocinha. Entre eletrodomésticos e comida doada pela associação, resta apenas um quarto na pequena casa para Ana e o filho adolescente dormirem.

Com muito pouco, esta chef, formada online durante a pandemia, prepara cerca de 400 refeições semanais para famílias com crianças que só comem nos dias em que têm aulas, pessoas sem abrigo e todos aqueles que batem à sua porta devido à fome.

Ana Lúcia Costa
Ana Lúcia Costa créditos: AFP or licensors

Onde está a comida?

"Num raio de 100 metros em qualquer direção tem alguém a passar fome", lamenta esta chef esguia, mas com uma energia vibrante que a leva a cozinhar sete dias por semana com a ajuda de um punhado de voluntários.

Para esta chef, a conta não fecha: se o Brasil é o celeiro do mundo, "onde (a comida) fica? Por que tudo é caro?", questiona, em alusão aos quase 59% de brasileiros que vivem em situação de insegurança alimentar, segundo dados da Rede Penssan.

Por isso, "a gente aproveita qualquer coisa, tudo no alimento", como cascas de beterraba, cenoura e limão para fazer sumos.

Sem infraestrutura, Ana Lúcia Costa esforça-se para fazer as entregas. Uma vez servidas em caixas biodegradáveis da Gastromotiva as refeições ainda quentes, a chef ativa a sua ampla rede de contatos no bairro para transportá-las, seja a pé ou em veículo motorizado.

Quem está "louco?"

Debaixo de uma passadeira tomada pelo vai e vem dos comerciantes na parte baixa da Rocinha, Anderson, como se identifica, é um dos sem abrigo que recebe, agradecido, o almoço, degustado por alguns com um pedaço de papelão como se fosse uma colher.

Este homem, com um corte no tórax, mal consegue descrever o que considera ser o ingrediente principal: "Ana tem um coração que não cabe no peito".

A cozinheira reage: "Tem quem diga que estou louca por perder o meu tempo a dar-me aos outros. Para mim, a loucura é assistir a tudo isto de braços cruzados!".

A ocupação também é o seu sustento. Ana trabalhou anteriormente como membro do conselho de proteção de menores da Rocinha. Foi devastador: "Vi tantos casos escabrosos... Cozinhar é uma terapia".

Carlos Alberto da Silva
Carlos Alberto da Silva créditos: AFP or licensors

 Gastronomia X drogas

A vida do chef solidário Carlos Alberto da Silva também foi marcada pela tragédia: perdeu o filho de 20 anos numa operação policial e acabou por ter uma recaída nas drogas.

A gastronomia "é o que me mantém longe das drogas", admite este homem negro que vive no morro Chapéu Mangueira, colado aos prédios luxuosos do bairro do Leme.

Este cozinheiro, de 52 anos, acordou às 03h para preparar arroz com açafrão e gergelim preto com "panaché" de verduras que vai distribuir com a sua equipa de voluntários aos mais necessitados na Lapa, bairro boémio no centro do Rio.

Carlos Alberto da Silva prepara as refeições na cozinha do seu pequeno restaurante, que construiu no andar superior de um campo desportivo, no qual trabalha o resto da semana. O chef admite que os clientes são escassos na comunidade e levar o negócio adiante é um desafio. Mas não desiste.

"Vou sair, ir para todos os lugares para arranjar capital", diz este homem, que também sonha entrar numa renomada escola de gastronomia francesa na 'Cidade Maravilhosa'.