Obstáculos, barreiras e dificuldades são alavancas de um povo resiliente, de uma região onde baixar os braços não é opção, de uma vila que quer (e merece!) ter o seu nome definitivamente no mapa.

A verdade é que são as condições agrestes que permitem uma fauna e uma flora únicas; a desertificação é combatida com indústria, artesanato, turismo e uma crescente população estrangeira; os incêndios não desmoralizam um povo habituado à labuta diária; as acessibilidades - ainda que a preços nem sempre acessíveis - permitem chegar às grandes cidades portuguesas em menos de duas horas e as condições de uma vida rural provam ser o melhor antídoto contra o stress, o cansaço psicológico e a fadiga da vida citadina.

Partimos à descoberta de Oleiros, sob o manto, em tons de castanho, das folhas que não resistem à chegada de uma nova estação e, num verão de S. Martinho, deixamo-nos guiar por um roteiro com o tanto que o município tem para dar.

Fosse apenas pela genuinidade e hospitalidade das gentes beirãs e a visita já seria amplamente justificada, mas é muito mais do que isso. Prepare-se para mergulhar num concelho único, rico em sabores, saberes, tradição e indústria.

O medronho

Das mezinhas caseiras ao seu imenso potencial culinário, medicinal e ornamental, o medronheiro tem vencido fogos e coabitado com outras plantações, para crescer, de forma espontânea e cultivada, por todo o concelho de Oleiros.

O seu fruto, o medronho, na categoria de frutos vermelhos, apresenta-se sob a forma de baga "rugosa" e de um vermelho intenso, que vai colorindo as escarpas das serras.

Medronho
Medronho créditos: Paulo Soares
Medronho
Medronho créditos: Paulo Soares

Na verdade, o sabor do fruto é aquilo que vulgarmente designaríamos de “desenxabido”, mas a sua utilização está longe de ser insípida, com produtos como o licor, a aguardente, as compotas ou as geleias.

Da Madeirã à Sertã Velha, passando pelas freguesias de Estreito ou Oleiros-Amieira, são muitas as plantações espontâneas, cultivadas e clonadas de medronheiro, isto para não falar da apanha de medronhos pelos populares, que continuam a usar o fruto em diversos produtos de consumo próprio.

Aliás, o medronho tem vindo a ter uma utilização cada vez mais diversificada, como a confeção de bolos de medronho, biscoitos de medronho ou pão de medronho.

É no seu uso mais comum - a aguardente e o licor - que fomos conhecer a Silvapa, de Idalina e Paulo Silva, e a Sertã Velha, destilaria sob a gestão de Ana Maria Mendes.

Idalina e Paulo Silva representam a possibilidade de muitas vidas numa vida só. O simpático casal, de 74 e 81 anos, ambos reformados dos CTT, decidiu, há cerca de 30 anos, iniciar a produção da agora premiada “Aguardente de Medronho”.

Silvapa
Paulo Silva créditos: Paulo Soares

Idalina fala-nos dos licores e compotas de medronho que a Silvapa agora produz, numa aposta ganha em diversificar o uso do produto, que valeu à empresa a distinção de “Melhor dos Melhores” licores nacionais em 2021 e uma medalha de Ouro no 10º Concurso Nacional de Licores Conventuais e Tradicionais Portugueses.

Por seu lado, Paulo Silva relembra o início difícil da empresa com "a legislação inexistente na época", já que "grande parte da produção de aguardente de medronho era realizada em destilarias comunitárias, para consumo próprio". Recorda também os mais de mil frascos de compota de medronho, de uma encomenda de França, que nunca chegou a partir, por conta dos terríveis incêndios que assolaram a região em 2017. Fala-nos da falta de apoio e dos poucos incentivos face aos 7 hectares de plantação de medronho da empresa e da sua destruição total de 2017, com a mesma naturalidade com que nos apresenta o primeiro alambique elétrico da região, exposto na empresa, à semelhança de muitos outros artefactos e acessórios usados para produção de aguardente, resinagem e fiação.

Na fábrica da Silvapa, parte da unidade fabril é preenchida por barris, onde o medronho permanece, durante cerca de três meses a fermentar, pelos destiladores e pela área de rotulagem e embalamento, onde não falta, em exposição, os diversos troféus que distinguem a aguardente e o licor da marca.

Silvapa
Silvapa créditos: Paulo Soares
Silvapa
Degustação de iguarias da região créditos: Paulo Soares

Tempo ainda para uma degustação pelos produtos gastronómicos da região, como o bolo de mel e as cavacas de oleiros, regados, obviamente, pelo licor de medronho.

Os produtos da Silvapa estão à vendas em lojas gourmets por todo o país e, outra boa notícia, é que os proprietários aceitam, sob marcação, visitas de grupos, para ver, in loco, a plantação de medronho e o processo fabril de produção de licores e aguardente de medronho.

Nas instalações da Silvapa conhecemos Lynne, que com o seu marido Scott, ambos oriundos da África do Sul, se instalaram em Oleiros há mais de uma década, e juntos criaram o “Arte para amanhã”, um negócio artesanal que inclui fiação de lã, barras de champô, sabonetes à base de azeite, com argila esfoliante, e ervas para chás e infusões.

Arte para Amanhã
Projeto 'Arte para Amanhã' créditos: Paulo Soares

A comunidade estrangeira está em franca expansão, muito por conta dos retiros de ioga na Amieira-Oleiros, com hóspedes oriundos de vários países, que acabam por se estabelecer na região. De tal forma que foi já criada a Associação estrangeira de artesãos de Oleiros.

Da Silvapa para a Sertã Velha, fomos conhecer o processo de rega gota-a-gota e a exploração de medronheiros da empresa Mendes & Mendes, fundada há mais de 30 anos e agora gerida por Ana Maria Mendes.

Ana Maria Mendes apresenta-nos, sob um intenso véu de neblina que cobre a propriedade e um vento serrano que nos recorda quão frios podem ser os invernos da Beira, a plantação de cerca de 20 hectares, com 95% de medronheiros clones, regados com sistema gota-a-gota: dois aspetos bastante inovadores da responsabilidade da GreenClon e da Escola Superior Agrária de Coimbra.

Sertã Velha
Destilaria Sertã Velha créditos: Paulo Soares

"Normalmente, o medronheiro não é regado", confessa Ana Maria Mendes, porém "os 40 painéis voltaicos, que possibilitam a rega por gravidade, de cerca de 5 mil arbustos por dia, permitem que o fruto possa ser vendido fresco".

Na calha, um processo de certificação para produção de aguardente de medronho biológica e a expansão do negócio para a produção de castanhas. Enquanto isso, a destilaria continua a apostar na produção da já afamada Aguardente Sertã Velha, que "a destilaria Mendes & Mendes tem vindo, desde 1987, pela mão do seu fundador António Ribeiro Mendes, a especializar, mantendo, ao longo dos anos os processos tradicionais de fabrico e procurando aumentar a qualidade dos produtos destilados".

A Aguardente Sertã Velha, qualidade superior, apresentada numa garrafa bastante original, está à venda nas principais garrafeiras nacionais.

A azeitona

Da fruta vermelha ao fruto verde ou preto das oliveiras, somos recebidos por João Marques, gerente da Casa Fernandes, uma empresa familiar fundada nos anos 40, com ramificações na olivicultura, floresta, saúde e imobiliário.

O lagar, com cerca de 60 anos, permite uma produção semi-tradicional, num espaço agora renovado, por força da total destruição aquando dos incêndios de 2017. Uma vez mais os fogos, a ceifarem vidas e sonhos, projetos e sustento. Ainda assim, a Casa Fernandes, à semelhança de outras empresas da região, perseverou e regressou mais forte, em várias áreas de negócio para, de forma sustentada, crescer e veicular o crescimento da região.

Casa Fernandes
Casa Fernandes créditos: Paulo Soares

Sob o lema "tradição e inovação de mãos dadas", João Marques fala-nos dos "30 hectares de olival Galega Beira Baixa, da Quinta Elvira, das cerca de 20 pessoas que a Casa emprega aquando da colheita e da produção, numa atividade intensiva de 45 dias de trabalho", com destaque para "o lagar de prensas, os capachos em nylon (antigamente em serapilheira) e o processo de decantação nas mãos do 'Mestre Lagareiro', que procura manter as características, numa produção mais suave e mais doce da azeitona galega".

Através de produção própria e da compra de azeitona galega, a Casa Fernandes, transforma toneladas de azeitona, na produção de cerca de 20 000 garrafas de azeite “D’Elvira”, o nome do olival, e azeite “Alfredo”, uma edição especial de justa homenagem a um dos impulsionadores da Casa, Alfredo Fernandes.

O objetivo é claro: "chegar às 300 toneladas de azeitona e internacionalizar a marca, sempre de forma sustentada". Oleiros, que chegou a ter mais de 20 lagares de azeite, conta hoje com cerca de cinco unidades, sendo a Casa Fernandes, a única com marca própria.

Casa Fernandes
Azeites da Casa Fernandes créditos: Paulo Soares

Apostado em criar "aromas com história", a Casa Fernandes prevê ampliar os seus negócios, com plantações de medronheiros, vinhas e castanheiros, para venda e produção.

Os azeites “D’Elvira” e “Alfredo” estão à venda no site oficial da empresa e em lojas gourmet por todo o país, com clientes na área de restauração e hotelaria, de norte a sul. A Casa Fernandes abre as suas portas, de forma gratuita, para visitas ao público em geral e comunidade escolar.

Nota ainda para a recém inaugurada sala de provas, onde os visitantes podem, no fim da visita, ter uma prova sensorial ou prova tradicional do azeite ali produzido.

A uva

O vinho secular da casta Callum foi recuperado, em Oleiros, pelas mãos de Sérgio Antunes e Tiodósio Domingues, dois jovens empreendedores que, em 2014, traçaram como objetivo a produção de vinho desta casta, que não era, até então, reconhecida pelo Instituto da Vinha e do Vinho.

"Se tivéssemos noção da burocracia e das dificuldades com que nos deparamos, talvez não tivéssemos avançado, mas ainda bem que o fizemos”, confessa Tiodósio. "Foi necessário ganhar a confiança dos produtores, fazer um levantamento histórico, contactar as entidades responsáveis, para uma primeira produção em 2016. A colaboração de diversos organismos, do investigador professor Leonel Azevedo e do enólogo Pedro Teixeira, foi essencial neste projeto", remata o jovem.

Callum
Os responsáveis pela recuperação da casta Callum créditos: Paulo Soares

A Cepa C’alua é de produção limitada, com garrafas numeradas, tendo sido comercializadas, em 2020, 2 500 garrafas deste vinho branco especial, um vinho regional Terras da Beira. O "vinho histórico" de 12% vol. deve ser bebido bem fresco e acompanha, na perfeição, o cabrito estonado, uma das maravilhas gastronómicas de Oleiros.

A dupla de empresários, a ultimar os preparativos para inauguração de um novo espaço e adega, para produção do vinho monocasta, comprou também terrenos na localidade da Cardosa, onde pretende iniciar a plantação de videiras “caluas”. O edifício, aberto a visitas, conta com uma sala de provas, cuja paisagem de um verde a perder de vista, é, por si só, imperdível.

Nos planos de Sérgio e Tiodósio, a aposta no enoturismo, com construção de bungalows na propriedade agora adquirida. A paisagem natural merece, de facto, uma visita.

O marmelo

Aí está outra fruta cujo sabor não é dos mais agradáveis, talvez por isso, a marmelada seja confecionada "com uma medida de açúcar para uma medida de marmelos", como nos explica a D. Fernanda, numa quinta em Relvas, na freguesia da Madeirã, onde, com o marido, labuta de sol a sol, fazendo dos produtos da terra o sustento da família, com venda de cavacas e marmelada, de criação caprina ou na apanha de medronhos.

Marmelo
Marmelo créditos: Paulo Soares
Marmelo
Preparação da marmelada créditos: Paulo Soares

Num lugar rústico que nos remete, instantaneamente, para a casa da avó, com comida feita nas panelas de ferro e onde a lenha crepita prazeirosamente, uma das "melhores cozinheiras da região" abre as portas da sua casa e um sorriso gigante a quem, porventura, a decidir visitar. Confessa, orgulhosa, que tem recebido estrangeiros para oficinas de cozinha tradicional: não nos espanta! A sua horta de sabores é, verdadeiramente, especial.

Provamos marmelos assados no forno, regados com calda de açúcar e polvilhados com canela e, não sei se do forno a lenha, dos marmelos naturais apanhados no pomar ou das mãos experientes da D. Fernanda, algo com tão simples transformou-se numa iguaria divinal.

Marmelo
D. Fernanda créditos: Paulo Soares

Com ela aprendemos a fazer marmelada, mas, na verdade, mesmo sem talvez saber, a D. Fernanda ensinou-nos muito mais do que isso. A autenticidade, simplicidade e alegria com que nos recebeu foi um bálsamo, numa sociedade demasiada ocupada e preocupada, que corre veloz, sem nunca sair do lugar.

R.P. Por Aí visitaram a região a convite do Município de Oleiros

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