Nos dias em que estive fechada em casa, por conta do confinamento, refugiei-me muito nos livros. Li novos, voltei a ler antigos preferidos e dei por mim novamente apaixonada pelas palavras de Fernando Pessoa e todos os seus heterónimos.
Não é por isso de estranhar que no meu regresso às ruas de Lisboa, primeiro de forma inconsciente e depois conscientemente, o tenha procurado.
Acompanhada pelo seu espírito (fantasma?) por entre poemas, o Livro do Desassossego e Lisbon: What the Tourist Should See, perdi-me na capital. Percorri, como se os visse pela primeira vez, os locais que fizeram parte do seu quotidiano, do seu imaginário e aqueles que ele considerava importante os turistas conhecerem.
Deixei-me transportar para uma Lisboa que foi cenário real/irreal de Fernando, Bernardo, Álvaro… Como se descobrisse um mapa. O mapa emocional e sensorial de Pessoa.
Comecei no Largo de São Carlos, onde também ele começou a sua existência. Vi a placa que assinala o seu nascimento a 13 de Junho de 1888 e imaginei o pequeno Fernando a espreitar da varanda daquele 4º andar. Seria melancólico? Alegre? Ou muito sério como quem já viveu outras vidas?
Sonhador era com certeza, pois com 6 anos de idade já criara o Chevalier de Pas (que se pode traduzir como “cavaleiro de nada”). A escultura de bronze que lhe foi dedicada em homenagem, com a cabeça feita num livro, pareceu-me muito apropriada.
Subi as escadas até ao Chiado e lá estava ele de novo na Rua Garrett. Desta vez na Brasileira, a olhar para mim. Chapéu, bigode aparado, perna cruzada, mão levantada como que a convidar-me para um café.
Não, pensei. Um solitário como Pessoa, nunca convidaria uma estranha para se sentar à sua mesa. Tenho para mim que ele seria tímido… Talvez menos com Ofélia Queiroz, a quem escreveu as “ridículas cartas de amor”.
Segui caminho e parei na Bertrand, onde certamente ele também pararia, uma ou outra vez. Saí com um novo livro na mala, passei na Basílica de Nossa Senhora dos Mártires, onde o bebé Fernando foi batizado, e desci a rua até ao Rossio, a que o poeta chamava o "coração de Lisboa".
Admirei a praça e a estátua de D. Pedro IV, senti o cheiro das rosas que emanavam das bancas das floristas e depois atravessei o Arco do Bandeira.
Em segundos, estava na estreita Rua dos Sapateiros. Do lado direito avistei o extraordinário Animatógrafo do Rossio com os seus belos detalhes de Arte Nova. Poucos locais em Lisboa mudaram tanto ao longo do tempo como este… Foi inaugurado em 1907 e começou por ser o salão de cinema mais luxuoso da capital, depois foi uma sala de teatro infantil e por fim transformou-se numa casa de peep shows.
Fernando Pessoa, suponho, terá assistido a filmes no Animatógrafo. Soube recentemente que ele admirava muito a 7ª Arte e que após 1917 e na década de 1920, chegou até a escrever alguns argumentos para filmes, ainda no tempo do cinema mudo, que ficaram incompletos (foram publicados em 2011 pela Ática e são escritos principalmente em inglês). Entre outros projetos, Pessoa planeou também lançar uma produtora cinematográfica, a “Ecce Film”, na Rua de São Bento, na mesma zona de Lisboa onde tinha vivido na infância após a morte do pai. Nessa altura, a sua mãe teve de vender a casa do Largo de São Carlos e mudar-se para uma casa mais pequena na Rua de São Marçal. No prédio onde viveram, está hoje afixada uma placa com um poema que em menino dedicou a sua mãe.
Fixei a minha atenção nos bonitos e coloridos painéis de azulejos do Animatógrafo do Rossio. São dedicados ao tema da luz elétrica, com duas figuras femininas a segurarem candeeiros. Não resisti a fotografá-los.
Dei depois uns passos em frente e encontrei a Licorista que no tempo de Fernando Pessoa era a Companhia Portuguesa de Licores, fundada por Abel Pereira da Fonseca. Consta que ele tinha por hábito parar aqui para beber um copo. Aliás, uma das poucas fotos conhecidas do poeta, em que ele, com humor se considerou “apanhado em flagrante delitro” foi tirada aqui e hoje está recriada num painel de azulejos. Como o estabelecimento estava encerrado, não o consegui ver.
Meti então pela rua de Santa Justa, passei a Rua Augusta, a Rua dos Correeiros e a Rua da Prata e virei para a Rua dos Douradores, onde vivia e trabalhava Bernardo Soares.
Vejo-me no quarto andar alto da Rua dos Douradores, sinto-me com sono; olho, sobre o papel meio escrito, a vida vã sem beleza e o cigarro barato que esquecido estendo sobre o mata-borrão velho. Aqui eu, neste quarto, a interpelar a vida!, a dizer o que as almas sentem!, a fazer prosa como os génios e os célebres! Aqui eu assim!…
— Livro do Desassossego
Senti-me de novo inquieta, respirei a solidão e pareceu-me ouvir os receios. Serei cúmplice de Bernardo, na procura do sentido da vida e na consequente constatação do seu não sentido? Ou apenas testemunha de um diário de Fernando feito de fragmentos, deambulações e reflexões?
A falta de liberdade que me trouxe a pandemia, exacerbou uma série de sentimentos sombrios que pareciam-me ecoar no Desassossego de Pessoa, mas agora, de novo na rua, queria deixar para trás essa angústia, a dúvida, a recusa, todo o peso da vida... Devolver o seu a seu dono...
Fugi por isso para um lugar mais luminoso — o Terreiro do Paço.
O Tejo brilhava em tons de prata quando passei o Café Martinho da Arcada em direção ao Cais das Colunas.
Um pouco mais em frente, um rapaz sentado nas escadas da nova praia urbana de Lisboa, abria uma lata de coca-cola para beber. Sorri ao recordar que foi Pessoa que criou o primeiro anúncio desta bebida em Portugal: “Primeiro estranha-se, depois entranha-se”.
Voltei para trás. Atravessei o Arco da Rua Augusta, “magnífico arco triunfal de grandes dimensões, indubitavelmente um dos maiores da Europa" e na rua da Conceição apanhei o emblemático elétrico 28 para Campo de Ourique. Saí na Rua Saraiva de Carvalho e dirigi-me ao número 16 da Rua Coelho da Rocha, onde Pessoa passou os últimos 15 anos da sua vida.
O edifício onde morou foi convertido numa casa-museu com uma exposição em três pisos, sobre a vida e obra do poeta e uma biblioteca especializada em poesia mundial. Quando visitei, apresentava também uma interessante exposição temporária — “Pessoas com relações com Pessoa”, de Pedro Matos Soares e Carlos Pittella. Uma exposição de fotografia, com imagens de leituras não-ensaiadas de sonetos pessoanos. A ideia é saber como pode um soneto ressoar no corpo de quem o lê.
I know not what tomorrow will bring
Com a última frase escrita por Pessoa, antes de morrer, a ecoar na minha cabeça, deixei a sua casa e embarquei de novo no 28 em direção ao Chiado.
Ainda não estava pronta para me despedir do poeta por isso hospedei-me no Lisboa Pessoa Hotel, no Carmo. No dia seguinte continuaria a minha visita pela nossa Lisboa...
Deixei o hotel, depois de uma noite bem dormida e um pequeno-almoço maravilhoso, sentindo-me uma verdadeira turista. Desta vez de carro porque as distância assim o impunham, comecei na Praça dos Restauradores e segui pela Avenida da Liberdade até à Praça Marquês de Pombal. “Foi este o local escolhido para erigir o monumento ao grande estadista português”, dizia Pessoa, deixando claro que a estátua do Marquês de Pombal ainda não estava concluída quando ele escreveu o seu roteiro. Foi inaugurada em 1934, um ano antes da morte do poeta.
Continuando a seguir o roteiro escrito por Pessoa Lisboa: O que o turista deve ver, fui pela Avenida Fontes Pereira de Melo. Vi o palacete "do milionário Sotto Mayor", um dos poucos do tempo de Pessoa que sobreviveu até aos dias de hoje. Já na Avenida da República, parei um pouco na Praça de Touros do Campo Pequeno, “que data de 1892 e foi construída em tijolo no estilo árabe”.
Dei uma volta pelo parque do Campo Grande e retornei ao centro da cidade, desta vez com destino ao bairro da Mouraria e de Alfama, os mais antigos de Lisboa. Vi o Castelo de São Jorge. Hoje é um dos locais mais visitados da capital portuguesa, mas na época em que Pessoa escreveu o seu guia, era ocupado por militares e não gozava de tanto prestígio como atrativo turístico. “Pode-se visitar pedindo autorização ao oficial de dia dos quartéis”, informava o poeta.
De regresso ao Chiado, segui rumo ao Aqueduto de Águas Livres, uma das mais impressionantes construções da engenharia lusitana, referidas por Pessoa. Do aqueduto, o roteiro continua para a região de Belém, onde estão os mais importantes monumentos referentes à Era das Navegações. O poeta destaca o Museu dos Coches, o Palácio Nacional da Ajuda, e não poupa elogios à Torre de Belém, uma fortificação erguida em 1521 e que se tornou símbolo da expansão marítima de Portugal.
Por fim chama a atenção para o Mosteiro dos Jerónimos e conclui: “Uma visita aos Jerónimos tem, necessariamente, de ser demorada para ser uma verdadeira visita”.
Penso que Pessoa, quando escreveu o seu roteiro, estaria longe de imaginar que os seus restos mortais ali seriam depositados tais como os de outro grande poeta português, Luís Vaz de Camões…
Apesar de haver mais coisas que o “turista deve ver”, achei por bem terminar ali a minha jornada e agradecer a Pessoa a companhia que me fez ao longo dos anos, durante o tempo de confinamento e neste regresso às ruas de Lisboa.
Serei o que quiser. Mas tenho de querer o que for.
— Livro do Desassossego
Artigo originalmente publicado no blogue The Travellight World
Sigam as minhas aventuras mais recentes no Instagram e no Facebook
Comentários