O documentário “Montado” é, antes de mais, uma obra de paciência. Baseio-me na minha experiência de fotógrafo amador durante a pandemia, em que comecei a dar mais caminhadas e a reparar com redobrada atenção nas aves em volta. As melhores fotografias aconteciam quando ficava perfeitamente imóvel e passava despercebido. Um desafio para quem aprecia "pensar a andar" e não se dá conta da confusão de ruídos que caminhar pode fazer.
É difícil de imaginar, por isso, as horas de espera em absoluto silêncio que terão sido necessárias para filmar alguns dos momentos mais marcantes desta produção luso-espanhola (a mais cara de sempre, segundo algumas notícias) sobre a vida selvagem do montado, essa vasta paisagem semi-natural que engloba o Alentejo e boa parte da Extremadura (onde é chamada de dehesa), e que reconhecemos mentalmente pelas suas clareiras pontuadas por azinheiras e sobreiros.
Ao longo dos 94 minutos do filme, estreado em Portugal apenas em agosto, viajamos até uma região desprovida intencionalmente de nomes e coordenadas (o local mais específico que chega a ser referido, julgo, é o Tejo internacional). Apesar de parecer geograficamente próxima, e por isso eventualmente mais familiar, está repleta de cenas impressionantes de luta pela sobrevivência, protagonizadas por diversas espécies animais. A espetacularidade deste território é uma das maiores surpresas do documentário de Joaquín Gutiérrez Acha. Graças à virtude da paciência e do alcance da tecnologia, o público tem acesso a um mundo que lhe passa largamente despercebido, marcado em igual medida pela ferocidade e graciosidade.
Um dos mais memoráveis exemplos disso mesmo é a espantosa sequência em que um guarda-rios é filmado a mergulhar, de cabeça, na água, para pescar o seu precioso alimento. O instante de precisão e ousadia do colorido pássaro desdobra-se, pelo efeito da câmara lenta e da pontaria do enquadramento e focagem, num momento de grande beleza, multiplicado pelo tamanho da tela.
Noutro ponto igualmente assombroso, o olhar da câmara permite, de algum modo, observar diretamente de frente um abutre que se prepara para aterrar sobre a carcaça de uma ovelha. O resultado é uma cena de tirar o fôlego, com a imponente ave lentamente a preencher o ecrã e a ficar, magia do cinema, maior que a vida. Antes de termos tido tempo para especular como terá sido filmada, partimos ao encontro do próximo habitante (ou visitante) deste domínio.
A espetacularidade, porém, serve um propósito. É a partir do lince-ibérico, um dos seres mais deslumbrantes e ameaçados que podem ser avistados no montado, que nos apercebemos da importância da biodiversidade. Embora se refugie em zonas mais inacessíveis, é aqui que este felino se desloca à procura do coelho, essencial à sua dieta diária. A população do pequeno mamífero, todavia, tem vindo a ser dizimada por várias doenças, com efeitos ao longo da cadeia alimentar de que faz parte. Pouco tempo depois de ter escapado da extinção, graças aos esforços de conservação, o lince-ibérico continua a lutar pela sobrevivência num habitat marcado pela escassez de alimento.
Como prova a potente imagem de um sobreiro a tombar sozinho, consumido por um inseto invasor, nem a própria paisagem está a salvo das ameaças desencadeadas por ação humana, das quais o clima em acelerada mudança é a mais premente.
Pode o montado vir a dar lugar ao deserto? Para quem, como eu, desconhecia a riqueza natural deste território apenas uma hora e meia antes, a pergunta da narradora (Joana Seixas) surge surpreendente e inquietante. Esse é, talvez, o maior contributo deste documentário, que merece ser visto no cinema pelo maior número possível de espetadores: o deslumbre com aqueles seres vivos implica-nos na sua sobrevivência.
O documentário Montado encontra-se em exibição em algumas salas de cinema portuguesas. Mais informações aqui.
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