A celebração dos 200 anos da Vista Alegre é a desculpa perfeita - como se necessário fosse - para visitar o emblemático espaço. Ladeado pelo remodelado Montebelo Vista Alegre Ílhavo Hotel, a visita ao bairro operário pode ser combinada com uma estadia, um passeio isolado ao magnífico espaço circundante ou uma visita guiada, com possibilidade de oficina de cerâmica integrada.
A praça, onde se destacam os elementos alusivos à celebração dos 200 anos da marca, inclusive uma “cápsula do tempo”, merece um olhar atento, sob a as árvores bucólicas, guardiãs do espaço bicentenário. Do centro, avistam-se a Capela de Nossa Senhora da Penha de França, a entrada do Museu e da fábrica, as lojas Vista Alegre e outlet, o teatro, o antigo posto de saúde e algumas casas dos operários. A história que o lugar encerra dificilmente poderá ser descrita, menos ainda em tão poucas linhas. Ir é a única alternativa, passo a passo, sobre as pedras e o chão que sussurram estórias do passado, onde cada recanto nos conta um conto e onde cada segredo é decifrado pelos olhos de quem se atenta. Não há palavras que o possam exprimir.
Conhecer a História da marca Vista Alegre, de 1824 aos nossos dias, é um mundo de possibilidades, que nos faz olhar as peças de outro modo. Entre as ideias visionárias do seu fundador, José Ferreira Pinto Basto, até ao minucioso trabalho manual que continua a persistir, das condições sociais e culturais oferecidas aos trabalhadores da primeira unidade industrial especializada em cerâmica, às dádivas que se mantém até hoje, sem mencionar o maravilhoso e ímpar espólio, as várias vertentes perfilam-se, numa equação que nos leva ao infinito, em peças de arte únicas e condições laborais ímpares, para mais de 700 trabalhadores.
A olaria e pintura
Minúcia, detalhe, precisão e saber fazer são alguns dos preceitos indicados para a elaboração das “obras de arte”. Para lá da produção em série, das (ainda assim) inestimáveis baixelas ou outros conjuntos de utilidade prática e diária, a marca reserva um espaço para a olaria manual, onde cada peça é única e exige a dedicação e delicadeza do oleiro. Num processo que inicia na pasta em estado líquido, passa por uma pré-secagem, por diferentes moldes, por uma subtil colagem e pela maestria do artesão, o nascimento de uma peça é individual e individualizado. Entre corantes, cozedura em chacota, vibração, retração e biscuit, muitos são os termos e as técnicas aplicados à arte da porcelana. Estas peças únicas passam por uma cozedura final até chegar ao atelier de pintura. Este último integra a visita do museu e permite perceber a minúcia e grandiosidade inerentes à arte da pintura, em diferentes peças, com diferentes técnicas.
O Museu
Antes de chegar ao alvíssimo atelier de pintura, reta final da visita, o museu abre as suas portas com exibição do primeiro forno a carvão e lenha, cujo original levou à construção de outros nove. O interior do forno, pela intensa atividade dos anos, exibe um espetacular mural envidraçado, fruto das muitas cozeduras que por lá passaram. Na área seguinte, outro forno do género, permite antever o laborioso processo de produção das peças.
O génio de José Ferreira Pinto Basto passa por ideias como esta, mas também pela substituição de cavalos por camelos para transporte das peças, cujo andamento mais compassado não comprometia a integridade das peças
A visita segue, com uma sala dedicada ao - ainda nos nossos dias - inovador fundador, José Ferreira Pinto Basto. À notável ideia de construção de uma fábrica de porcelana em Ílhavo, em 1824, junta-se o extenso complexo criado à volta do labor e da religião, com dormitórios, posto de saúde, casas, teatro, creche, coro e cantina, entre outros edifícios erguidos em prol da comunidade Vista Alegre. À época (e ainda hoje) a fábrica oferecia, aos seus trabalhadores, um sentimento de pertença comum.
Pinto Basto erigiu uma “vila” em Ílhavo, oferecendo aos seus trabalhadores direitos que julgavam utópicos, como uma habitação condigna, um teatro, um posto de saúde, ateliers de formação especializada e, pasme-se, formação musical. Esta não só alfabetizava os trabalhadores, na leitura de pautas, como permitia a graciosidade e desenvoltura de movimentos manuais ao tocar um instrumento musical, que serviria, em última análise, para a elaboração das peças de porcelana. O seu génio passa por ideias como esta, mas também pela substituição de cavalos por camelos para transporte das peças, cujo andamento mais compassado não comprometia a integridade das peças. Ou ainda pela ema, pássaro que associa à sua marca de porcelana, que, para quem não sabe, é uma ave que não anda para trás, prova do manifesto desejo de progresso.
Referência ainda para o facto dos seus bisnetos serem os responsáveis pela introdução do futebol em solo luso, após as suas viagens educativas por Inglaterra. Isto porque, ainda hoje se mantém vivo o Sporting Club da Vista Alegre, a disputar em 2024/25 o Campeonato Sabseg. Viva está, igualmente, a programação do teatro, numa parceria com a Câmara Municipal e projeto cultural 23 Milhas, que tem como objetivo a dinamização do espaço através do Laboratório Artes Teatro Vista Alegre.
São tantas as peculiaridades e particularidades da Vista Alegre, como marca e como identidade, que uma visita pelo Museu, pela Capela ou pelo Bairro permitem viagens inestimáveis, que rumo a nenhures, aportam tanto aos seus visitantes. Impregna-se quase um sentimento de orgulho, como se o público fizesse parte da excelsa fábula e aquela fosse também a sua história, na peça, cuidadosamente estimada, de geração em geração, que habita cada lar português.
De volta ao museu, passamos pelo espaço dedicado ao vidro, ao pó de pedra e ao modernismo, até à comunidade fabril, que chegou a ter também corporação de bombeiros. As litofanias, a escultura, o património cultural e as diferentes louças e peças são pequenas grandes maravilhas divinas, que merecem a nossa atenção. Findamos na já referida oficina de pintura manual, com a saída do Museu a abrir portas para a loja Vista Alegre, onde o acervo e as vitrinas se mesclam ao espólio que deixamos para trás. O bairro acolhe igualmente uma loja de outlet, com produtos descontinuados e parcerias com outras marcas nacionais, e uma loja Bordallo Pinheiro, assim como uma cafetaria.
A Capela
Na Capela de Nossa Senhora da Penha de França, Monumento Nacional desde 1910 e incluída no Inventário Nacional do Património Cultural Imaterial em 2015, festejada anualmente no primeiro fim de semana de julho, com procissão pelo bairro operário, as manifestações culturais e patrimoniais estão em cada pormenor, desde o túmulo esculpido por Claude Laprade, aos frescos e pinturas murais, passando pela azulejaria a azul e branco, com cenografia única.
O Bairro
Tempo ainda para visitar a “creche”, espaço que alberga, aos dias de hoje, o serviço educativo, com diferentes ateliers e oficinas manuais da marca, como a possibilidade de pintar uma peça da Vista Alegre, uma proposta bastante procurada - e estimada - pelo público.
Um passeio pelo bairro dos operários permite perceber que algumas casas ainda são, à data, habitadas por trabalhadores, enquanto outras foram reabilitadas para integrar a oferta de alojamento do hotel, como é o caso da antiga casa do responsável da fábrica, convertida numa moderna penthouse. Passamos pela fonte dos amores, seguimos em direção ao teatro e vagueamos por ruas ladeadas de diferentes espécies de árvores, com nomes de alguns antigos mestres da fábrica, onde se respira criatividade, bom gosto e excelência. Na Vista Alegre não há ínfimos detalhes que não sejam cuidados com o desvelo que merecem.
O Museu e a Capela estão abertos de segunda a domingo, das 10h30 às 12h00, e das 14h00 às 18h00 (18h30, de maio a setembro), com visitas guiadas e áudio guia, cuja marcação antecipada se aconselha.
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