Se, na terça-feira, um de nós vos dissesse «ai e tal, a gente sabe», seria normal. Mas é mentira. Nenhum adivinhava que a etapa mais curta desta viagem traria Portugal num caleidoscópio.
Da Ria Formosa ao Caldeirão foi sempre a subir. As retas ganharam esquinas brutas, o casario deixou de fazer mancha, as pessoas deram lugar a cumes e silhuetas de cortiça e o compreensível medo de quem não sabe onde vai dormir passou com o medronho. Não foi fácil, mas tentámos três vezes.
O primeiro dia foi de muita expectativa, mas partimos do marco dos 738km da EN2, em Faro, com a pompa devida e como quem espera que venha festa estrada adentro. A caminho de S. Brás de Alportel, a paisagem foi mudando muito suavemente, em contraponto com o terreno que ia dobrando e dando sinais de um passeio com bónus reservado para quem ia ao volante. Até então, tudo ia batendo certo com o retrato que nos fez Zé Amaro, presidente do Moto Clube de Faro.
Em São Brás e sem casa, começava o primeiro desafio. Havia que encontrar alojamento.
Imbuídos de uma humilde lata e com um plano desenhado, assomamo-nos à porta do estabelecimento onde tínhamos encomendado a estampagem das nossas camisolas. A ideia era começar esta aventura de pedir um pouco de telha com quem já estava, pelo menos, a par dos contornos da viagem.
Não foi à primeira que fomos bem sucedidos. Um colaborador alegou animais domésticos de temperamento difícil, e não houve nada a fazer. Eis que surgiu o sr. Rui, proprietário da loja, hoje santo padroeiro dos jovens sem-abrigo, que quis saber ao que vínhamos. Vociferámos um «era uma casa», num romper de esperança, e bastou uma chamada para que se materializasse o milagre.
«Tenho o prazer de vos dizer que vão passar a noite ao Moto Clube de São Brás de Alportel» – disse como quem sabe que está a dar a novidade do ano a alguém.
Seguimo-lo até lá e a receção não poderia ser mais hospitaleira. Foi com cerveja e uma boa conversa que nos confiaram as camaratas do clube. Como se tudo isto ainda não bastasse, abasteceram-nos o stock de mantimentos para seguirmos viagem preparados para a eventualidade de não encontrarmos outros que tais. Assim nos disse o sr. Luís, responsável, em grande parte, pela mudança de tom da nossa noite.
O segundo dia foi feito entre serpenteados e paragens para admirar a infinita serra do Caldeirão. Foi preciso fazê-la toda para chegarmos ao Ameixial e apanharmos o queixo depois do que acabávamos de ver.
A nossa história nesta localidade quase se pode resumir a um café. O Café Central, da Dona Maria Antónia era, ao final da tarde, a nossa única hipótese de escapar ao check-in nos bancos do carro. Entre queijos e enchidos, presunto e vinho, conseguimos demonstrar que vínhamos em paz. Neste caso, bem foi preciso ganhar a confiança, é que no Ameixial são cerca de cem - trinta no lar da terra - e toda a agente vê toda a gente, quase todos os dias.
Nesta vila, atravessada pela Nacional 2, está sentada à berma a segurança quase absoluta de se poder cruzar a estrada sem olhar.
Apesar disso, ou precisamente por isso, a ajuda chegou. E veio de forma voluntária, com a preocupação genuína de quem não quer deixar o outro a dormir na rua. O filho da Dona Antónia, condutor de ambulâncias do Ameixial, desencantou as chaves de um abrigo de montanha e, amavelmente, conduzi-nos até lá.
As gentes do Ameixial têm tanto de exceção como de excecionais e isso faz-nos largar o Algarve com confiança no que se avizinha.
Para já temos um plano, o Alentejo. O Alentejo é (o) plano.
Texto: Casa em Todo o Lado
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