O ponto de partida começa nas margens do Guadiana, em Alcoutim, e é preciso cruzar três serras – Caldeirão, Monchique e Espinhaço de Cão – para avistar o Atlântico, no Cabo de São Vicente. São 14 setores que atravessam o interior do Algarve num percurso chamado GR13, o nome oficial da rota atribuído pela Federação de Campismo e Montanhismo de Portugal (FCMP). É também esta instituição que controla as marcações, implementa regras e questões de segurança.
Inaugurada em 2009, a Via Algarviana já era um sonho antigo da Almargem – uma associação ambiental algarvia fundada em 1998. O SAPO Viagens falou com Anabela Santos, a coordenadora da rota, que explica que a ideia deste caminho pelo interior de uma região maioritariamente conhecida pelo seu litoral surgiu em 1997. “Na altura, o Algarve já tinha uma grande comunidade de residentes estrangeiros que organizavam caminhadas. Na época, não estava muito na moda e a associação promovia caminhadas de descoberta pelo interior”, conta Anabela.
As rotas pedestres surgiram com o mote de promover “um Algarve diferente do sol e mar e sol e praia”. “As pessoas conheciam as praias mas desconheciam o interior lindíssimo e o património cultural muito interessante”, explica.
“É um Algarve onde as pessoas ainda têm tempo para nos perguntar se está tudo bem”
“O litoral tem outro ritmo, no interior encontramos pessoas sentadas a fazer algum artesanato, a trabalhar as canas, por exemplo, conseguimos ver algumas tradições, e se passarmos nas hortas, é seguro que nos oferecem qualquer coisa, uma laranja, ou nos dão um grande sorriso”, conta-nos Anabela, natural de Castro Marim e a viver em Loulé, onde tem sede a Via Algarviana.
Incansável a elogiar o interior da região, afirma que, além da beleza natural, quem faz uma rota tem de a sustentar com património cultural. Mas como se faz um caminho? Aliás, vários: além da rota que atravessa o Algarve de ponta a ponta, há ainda a possibilidade 4 Rotas Temáticas. Em Alcoutim, a Rota do Contrabandista, em Loulé a Rota da Água leva-nos por levadas, poços e açudes, em Monchique a Rota das Árvores Monumentais impressiona com o património natural e no mesmo concelho podemos ainda apreciar a Rota da Geologia. Além destes temas, há mais 12 Pequenas Rotas circulares para explorar, dando a cada viajante a possibilidade de traçar os seus caminhos preferidos.
Pelo interior do Algarve e entre os registos, caminhos públicos e privados, tentava-se recriar os percursos que os peregrinos faziam em honra de São Vicente. Depois, fizeram-se todos os desvios necessários para atualizar caminhos e o levantamento do que seria o mais interessante. Recorreu-se a livros, a entidades que apoiaram na parte mais histórica e há um trabalho contínuo de parceria com os municípios por onde os percursos passam. “Os traçados têm sempre de ser validados, porque às vezes há caminhos privados ou temos a indicação de que há um caminho perto ainda mais bonito e pode merecer uma alteração”, explica Anabela, que adianta que “nos primórdios foram feitas reuniões nos sítios com a população local para se irem afinando os percursos”. Além da sabedoria dos locais, estas reuniões também acabaram por dar a conhecer a rota aos habitantes e, talvez por isso, também não estranhem quando veem chegar novos viajantes.
Os desvios que esta rota já sofreu podem ser medidos em quilómetros: se inicialmente o percurso estava pensado para 240, desde 2009 que os visitantes têm 300 quilómetros para percorrer.
Alguns municípios já tinham alguns trilhos e infraestruturas, como era o caso de Loulé, mas em outros locais foi necessário tratar da sinalização ou manutenção. Outros percursos foram feitos de raiz e num trabalho conjunto com as Juntas de Freguesia para saber os pontos de interesse e os locais a passar.
“Antes da pandemia, tínhamos por hábito fazer uma caminhada com algumas pessoas para testar as novas infraestruturas e sentir um pouco o pulso e perceber o que as pessoas diziam sobre o percurso. Chegou a acontecer no caminho experimental alguns habitantes explicarem que havia um local próximo mais bonito e alterarmos o percurso. Tentamos sempre envolver os locais, são eles que têm a base histórica, ou a memória dos caminhos que os avós faziam. Há também um contacto próximo com as associações locais, porque fazem BTT e caminhadas e muitas vezes conhecem trajetos interessantes”, explica Anabela.
Além do interesse paisagístico e cultural, na divisão por sectores pesaram sobretudo as infraestruturas. “Na Via Algarviana não temos a disponibilidade de alojamentos do litoral e há coisas que têm de ficar asseguradas: as pessoas têm de ter um sítio para dormir e um sítio para comer, daí que haja percursos de 15km e outros de 30km. Muitas vezes perguntam-nos porque há sectores tão longos e é exatamente pela falta de pontos de apoio”, conta Anabela, que vai explicando que é um choque de realidade para quem vem de um mundo muito citadino e se esquece que existe esta parte do território interior, “que ainda é uma faixa muito grande do país e onde vivem pessoas completamente isoladas”.
Há operadores turísticos que fazem já um pacote com tudo incluído e houve até alojamentos que surgiram para apoiar a rota, Anabela explica que até há a necessidade de mais alojamentos em alguns pontos da rota e que é fundamental planear esta viagem.
Entre os primeiros passos nas caminhadas e os estrangeiros experientes
Mas quem chega já sabe ao que vem e é mesmo o contacto com a natureza e com o interior que procura. A maior parte são estrangeiros: “ a nível internacional, os nórdicos estão habituados desde pequenos a caminhar e faz parte dos hábitos familiares”. Anabela conta que quando acompanha jornalistas holandeses e alemães há a partilha de histórias de famílias e de infância em caminhadas e que nós, os portugueses, começamos recentemente a ganhar este hábito e a procurar a natureza – “a pandemia despertou mais esse hábito e há um lado de Portugal que desconhecemos, temos um país riquíssimo para fazer caminhadas, os municípios também começaram a instalar pequenas rotas, a criar mais infraestruturas desta tipologia e começamos a caminhar mais e a precisar de desacelerar”.
Dos principais visitantes destacam-se os jovens reformados, entre os 60 e 70, com boa preparação física e com tempo para fazer a grande rota de seguida: 14 dias. Para pessoas que estejam a trabalhar, a disponibilidade de tempo é mais exigente, mas há quem o faça por etapas. “Muitas pessoas contactam-nos do Porto ou de Lisboa para ser um projeto anual, vêm aos fins de semana, em grupo de amigos, e vão fazendo por sectores, há quem faça metade num ano e metade no ano seguinte também”, explica Anabela Santos. E localmente também há interessados, sejam professores e projetos escolares, alguns locais e os praticantes de BTT ou comunidades de estrangeiros a viver na região e que vão fazendo por etapas ao longo do ano.
A fauna, a flora e a proteção dos habitats
Ao longo das centenas de quilómetros a fauna e a flora vão ilustrando o caminho e tudo está identificado, afinal quem gere esta rota é uma associação ambiental e a proteção dos habitats não lhes passa despercebida, mas nem poderia passar – para ser aprovada uma rota que passe em território da Rede Natura 2000 tem de ter o aval do Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas. “É um processo burocrático, mas é importante perceber se há algum perigo para a preservação na natureza e quando construímos uma rota não sabemos quantas pessoas vão passar ali e pisar aquele terreno”, conta a responsável pelo GR13, a matrícula do percurso atribuída pela FCMP.
A matrícula – a Grande Rota número 13 – é atribuída pela Federação, que também define ainda as cores e as marcas registadas. A sinalética é a última parte a ser montada num percurso e obedece a inúmeras regras: desde a distância entre os marcos ao local onde são inseridos na paisagem.
Além da Grande e das Pequenas Rotas, há muitas histórias para serem contadas: há 10 Percursos Áudio Guiados, 9 Ligações. Em cada região, há um tema associado, por exemplo, em Monchique podemos ouvir as histórias sobre as chaminés tradicionais e em Alportel a ligação à cortiça.
Um caminho que se constrói para todos
Quem quiser meter-se por estes caminhos, grandes, pequenos ou temáticos é aconselhado a fazer o download dos tracks e a conhecer bem o percurso. Em breve, vai estar também disponível uma aplicação móvel para descarregar todos os materiais e ter acesso à informação sobre as infraestruturas disponíveis. Além de dar a conhecer mais facilmente as infraestruturas disponíveis ao longo do caminho, a ideia é também ligar a localização com os serviços de emergência. Tanto a aplicação como o site e audioguias estão a ser trabalhados para uma oferta em mais idiomas.
Outra das principais novidades que a Via Algarviana também prepara é dar acesso a este território a pessoas com limitações físicas. Assim, um dos audioguias contará com audiodescrição e será adaptado para invisuais e aguarda-se ainda por uma cadeira especial para pessoas com mobilidade reduzida, que poderá ser requisitada gratuitamente. “Que seja o início de uma nova era de mobilidade”, afirma Anabela.
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