Dom Haughton é um fotógrafo amador da Cornualha, no sudoeste da Inglaterra, com uma paixão por registar paisagens, sobretudo marítimas (não fosse a Cornualha estar rodeada pelo mar em três direções). Todas as suas imagens incluem a história sobre o momento fotografado e o que o levou até lá. Nesta edição do Como fiz esta fotografia, republicamos o seu relato, de março de 2022, de como não resistiu ao apelo de ver com os seus olhos uma das árvores da Madeira mais fotografadas nos últimos anos.
Texto e fotografia acima por Dom Haughton
Nem com a melhor vontade do mundo alguma vez eu iria conseguir chegar até ali para o indubitável drama do nascer do sol. Gostava de ser capaz disso, mas a única maneira de conseguir tal feito passaria por acampar num dos vários abrigos abertos durante a noite, muito provavelmente assegurando uma boa dose de hipotermia pelo caminho. Costumava preocupar-me com a minha inabilidade para sair da cama antes do primeiro pardal ter piado e com o que isso significava: perder aquilo que muitos na comunidade fotográfica consideram a melhor parte do dia. Mas já ultrapassei isso. Até posso quebrar o ciclo uma vez ou outra, tal como no ano passado, quando saímos da nossa tenda antes do amanhecer e caminhámos ao longo de dunas para fotografar as marés vivas em Burnham-on-Sea [uma localidade costeira em Inglaterra]. Chegar aqui, todavia, a partir do nosso apartamento no Funchal teria sido um pouco mais complexo. Teria levado boa parte de uma hora, e incluído uma caminhada sonolenta através de um terreno acidentado, para chegar a tempo da primeira hora azul do dia. Nunca iria acontecer, não importa o quão boas fossem as minhas intenções.
Mesmo sem a luz épica, havia algo de especial nesta sobrevivente solitária de alguns incêndios florestais relativamente recentes, que destruíram grandes partes da preciosa floresta que é sinónimo destes vales montanhosos na Madeira. É uma de muitas que pontuam estas íngremes encostas verdes, mas ao contrário das restantes milhares de formas esqueléticas que emergem aqui e ali da névoa, esta árvore é bastante única. Está situada numa plataforma rochosa mesmo ao lado do trilho, como se exigisse atenção. Os seus ramos extintos espalham-se em direção ao céu, quais tentáculos de uma criatura moribunda, congelada no tempo — congelada em prata. Com a perspetiva adicional de continuar ao longo do trilho de alta montanha e chegar ao topo do Pico Ruivo, o ponto mais alto da Madeira, não ia perder a oportunidade de vê-la com os meus próprios olhos enquanto lá estava. Junte-se ao episódio mais uma sessão de fotografia ao final do dia na ponta oriental da ilha (a Ponta de São Lourenço), e um dia perfeito estava prestes a começar.
Claro que eu sabia o que ia encontrar, graças a um tal Danson [Nigel Danson], que havia visitado o local e partilhado a sua beleza com a sua considerável audiência no Youtube, depois de ter respondido a um alarme madrugador e registado a sua magnificência debaixo de um céu matinal perfeito. Não só isso, eu tinha a certeza de que tinha localizado a sua localização precisa no mapa depois de ter inspecionado cada centímetro do meu ecrã entre o parque de estacionamento e o cume da montanha. Enquanto caminhávamos para o telhado da ilha, no Pico Ruivo, não havia como confundi-la quando passámos por ela. Ali perto, um abrigo estava repleto de caminhantes com ar cansado, que tinham provavelmente percorrido toda a extensão do trilho desde o outro lado do vale, cruzando assim os dois maiores picos da Madeira. Por ora, uma fotografia rápida com o telemóvel teria de chegar. À volta, aproveitaria uma paragem no abrigo para ver a árvore mais de perto.
Quando a Ali e eu aí chegámos, à procura de algum calor num cume montanhoso bem frio, o abrigo já se encontrava vazio, e este mundo de nuvens era só nosso. Há quem faça troça de nós por só chegarmos a certos locais várias horas depois de toda a gente, mas é fenomenal a frequência com que damos por nós a desfrutar deles sozinhos por causa da nossa inaptidão para sair cedo da cama. O esqueleto em tons de prata era, por agora, só meu.
E que beleza esta, moldada pelos ventos predominantes, o tronco formando um ângulo reto com a encosta e os galhos apontando todos na mesma direção, através do vazio acima do vale profundo
E que beleza esta, moldada pelos ventos predominantes, o tronco formando um ângulo reto com a encosta e os galhos apontando todos na mesma direção, através do vazio acima do vale profundo, onde tantas outras das suas companheiras carbonizadas jazem um pouco por todo o lado, em todo o tipo de poses, entre um mar de verde. Algumas ainda orgulhosas e paradas na beira das encostas como sentinelas, outras esparramados de lado, em direção ao chão, e outras ainda deitadas de bruços, projetando enormes formas parecidas com aracnídeos na névoa distante. Do outro lado do vale, elas são visíveis em números ainda maiores, uma colcha de retalhos de composições abstratas para as mais variadas distâncias focais. Se a silenciosa encosta da montanha pudesse contar histórias, pergunto-me o que diriam estes sussurros. Além de me dizer para sair da cama mais cedo se quiser apanhar a melhor luz...
Mostrei a foto resultante à Ali e ela disse que a fazia lembrar "O Grito". “Ah, sim, a pintura de Munch”, respondi. “Consigo vê-la, agora que mencionas isso.” “Não, o filme”, respondeu-me. Eu era o tipo de criança que costumava esconder-me atrás do sofá quando o Doctor Who passava na televisão, por isso não faço ideia daquilo do que possa ser.
Podem ver mais das fotografias do Dom, e ler as histórias que as acompanham, na sua página no Flickr.
Texto original traduzido do inglês por Pedro Neves. Fotografia adicional por Radim Paňák.
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