Na aldeia histórica de Cacela Velha, as caravanas não entram. Os carros ficam à porta e as bicicletas têm o mesmo destino. Na ausência das estruturas de ferro a que o nosso bom português apelida de parque de bicicletas, lá tive de obrigar o meu veículo de duas rodas a abraçar-se a um poste que segurava uma placa informativa.
Ao longe vê-se uma multidão de pessoas, num cenário em que o espanhol se sobrepõe à língua de Camões. Pais, tios e avós carregam às costas chapéus de sol, cadeiras, geleiras e toda uma panóplia de insufláveis muitas vezes já cheios. As crianças limitam-se a correr de um lado para o outro. Tudo merece a sua atenção, desde as casas caiadas de branco com as portas e janelas pintadas de azul ou amarelo, a vista para o Parque Natural da Ria Formosa e as pequenas lojas que vendem tudo aquilo que pode deixar uma criança feliz nos minutos seguintes. Nem calculam que as pedras da calçada que pisam estão dispostas sobre uma arriba fóssil com cerca de um milhão de anos.
Olho para Cacela Velha como uma representação em tamanho real de quando em miúdo brincava aos piratas. Havia sempre um ponto alto a partir do qual se controlava a aproximação de embarcações perigosas. Aqui, é a fortaleza que assume a função de proteção. Em tempos foi um castelo de mouros, mas depois de voltar a ser tomado pelos portugueses serviu de apoio à reconquista de Tavira, Silves e Aljezur. A cisterna, que se encontra ao pé da Igreja Matriz, é também uma herança dos árabes. Nas minhas brincadeiras este elemento não existia. A água estava sempre garantida. Apenas gostava que a minha mente tivesse tido a capacidade de imaginar cidades em que as ruas adotassem os nomes daqueles que mais a marcaram. A passagem do poeta árabe, Ibn Darraje Al-Castalli (nascido em Cacela no ano de 958), pela aldeia, assim como de Sophia de Mello Breyner Anderson e Eugénio de Andrade ficou eternizada nas paredes que dão forma a esta região do concelho de Vila Real de Santo António.
Se na Idade Média se andava por Cacela Velha de espadas e escudos, hoje quem por lá passa vai de t-shirt, calções e pé descalço. Andar de pé descalço é também uma arte. Para se chegar à paradisíaca praia de Cacela Velha, há que pisar os grãos de areia certos. Os picos não escolhem género nem idade. Só precisam de um pé para se alojar. Ao longo do meu percurso, que não foi feito de pé descalço, ouvi bastantes interjeições e locuções interjetivas de dor por parte dos transeuntes. Há que haver sensibilidade para saber identificar em que momentos é tão precioso enfiar o dedo na chanata. Para quem não gosta do desafio de fazer a travessia pelo próprio pé ou tem mobilidade reduzida, há sempre a opção do barco. Algumas moedas são suficientes para evitar a experiência de se afundar no lodo.
A hora de jantar aproxima-se e a multidão que há pouco lutava por um lugar na praia, agora espera numa longa fila para os comes e bebes. A t-shirt, os calções e o pé descalço ficam para trás, e entra no outfit a camisa de verão, as calças de sair à noite e o melhor par de ténis. Já na Ria Formosa, há quem continue de pé descalço enfiado na areia para que as conquilhas e as ameijoas possam chegar aos pratos.
O Miguel estuda jornalismo, pratica esgrima e nos tempos livres escreve sobre as viagens que faz no seu blog, Ponto de Fuga.
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