Por João Damião Almeida
My name is Joburg. Johannesburg.
A primeira vez que entramos em Joanesburgo vimos de norte, do Zimbábue. Depois de 17 horas de viagem, com paragem na fronteira pelo meio, damos por nós a entrar numa África totalmente diferente. Os carros à nossa volta parecem multiplicar-se e correm ágeis na autoestrada larga de cinco faixas. Os bairros densos em prédios de diferentes tamanhos e feitios são a perder de vista. Estamos a entrar na amálgama urbana que resulta da fusão dos já indistinguíveis Grande Joanesburgo e da capital Pretória e que chega a incluir dezenas de cidades e quase quinze milhões de pessoas.
Parecem passar-se horas desde que os campos agrícolas dão lugar ao cimento até chegarmos ao nosso destino no centro de Joanesburgo. Vou colado ao vidro, com o olhar no horizonte, naquela densidade e dimensão dos edifícios que aos europeus não é familiar.
Ainda nesse dia saímos de Joburg (diminutivo inglês que Johannesburg ganhou) para Moçambique pela mesma estação de autocarros a que tínhamos acabado de chegar e demoraríamos mais de um mês a regressar àquela cidade e a partir dela começar a explorar a África do Sul.
Navegantes de sofá, ou seja, couchsurfers
Para a nossa estadia nesta metrópole, optámos por um couchsurfing. A aplicação que faz a ponte entre viajantes e anfitriões com alguma cama ou sofá (couch) extra é suficientemente popular na África urbana e em Joanesburgo não foi difícil encontrar um casal de sul-africanos com quem partilhar os nossos dias naquela cidade.
Esta experiência de alojamento familiar é muito mais do que um aplicativo para encontrar acomodação. É também uma oportunidade de troca de culturas, de experienciar as rotinas locais e partilhar a descoberta de uma cidade. Esta seria a quarta experiência de couchsurfing da viagem, depois do Quénia e da Tanzânia.
Chegámos num Uber já de noite a uma belíssima casa em Sandton e fomos logo bem recebidos pelo casal nosso anfitrião e mais à frente dois Yorkshire terriers e uma mesa apetitosa.
Os nossos anfitriões são Afrikaners, de ascendência holandesa, falam inglês connosco e entre eles inglês e Afrikaans. As famílias de cada um foram para a África do Sul no século XVII, bem antes até dos milhões de europeus e africanos que viajaram àquela mina de oportunidades na corrida ao ouro do final do século XIX. Aprenderemos mais tarde a importância destes anos e destas migrações. Foi o período em que se fez Joanesburgo e se desenhou o destino da África do Sul.
Jantamos puré de abóbora, espigas de milho e a orgulhosa carne sul-africana, acompanhada de mel. No dia seguinte, prepararíamos nós para eles uma francesinha. Por agora, vamos desfrutando da refeição enquanto planeamos o dia seguinte. O casal participa ativamente no planeamento mas não poderá juntar-se, já que será dia de (tele-)trabalho.
Sentados à nossa frente, o Jaco e o Conrad explicam-nos que um passeio no autocarro hop-on hop-off é a forma mais segura e prática de conhecer a cidade. As atrações são dispersas e grande parte delas em lugares pouco recomendáveis para andar a pé, mesmo durante o dia. O autocarro turístico de dois andares é descapotável e oferecerá uma excelente perspetiva da cidade enquanto uma gravação nos vai contando sobre a sua história.
Uma das primeiras paragens obrigatórias - os nossos anfitriões vão detalhando - será o museu do Apartheid, um dos mais célebres museus sul-africanos. "Há quem fique duas horas, há quem fique cinco". Acabaremos por pertencer ao segundo grupo. Explicam-nos, sem querer estragar a surpresa, que o museu reúne exposições temporárias e permanentes sobre o sistema de segregação social que regeu a África do Sul durante 46 anos, as suas causas e a sua queda, assim como a vida de certas figuras históricas como Nelson Mandela. Logo ao início, imprimir-nos-ão aleatoriamente no bilhete o nosso grupo racial: branco ou não-branco. Consoante isso, e mimetizando o que acontecia na altura, entraremos por portas diferentes no edifício e veremos e leremos coisas diferentes na primeira secção do museu.
Explicam-nos ainda que depois do museu é também possível sair do autocarro para ver o Distrito das Minas, o Tribunal Constitucional, a casa onde viveu Nelson Mandela depois de ser libertado e o “bronze africano dos arranha-céus” Carlton Centre com a sua vista panorâmica do quinquagésimo andar. Há ainda uma extensão deste percurso de autocarro que permite visitar Soweto, o bairro estabelecido em 1963 para alojar os negros que trabalhavam nas minas de ouro e que se firmou como símbolo da resistência anti-racista ao Apartheid.
A própria viagem de autocarro será ela mesmo um ponto alto. Iremos ver em alguns momentos vistas magníficas para a cidade, por vezes de cimento e vidro, outras vezes de verde, não fosse Joburg considerada a maior floresta urbana do mundo.
Os pratos vazios e as barrigas cheias trazem-nos de volta à realidade: é altura da sobremesa. Ajudamos a levantar os pratos enquanto o Conrad traz para a mesa pudim de tapioca com creme. Vão ainda buscar um saco de plástico com umas fatias de carne escura para provarmos: chama-se biltong e é uma especialidade Afrikaaner que consiste em fatias de carne de qualquer quadrúpede temperada e seca ao sol. A receção é mista.
Os tempos recentes no El Dorado
Por esta altura são dez da noite. Enquanto nos vendiam a cidade onde cresceram, fomos ali assistindo a uma aula de história sul-africana do último século e agora puxamos a conversa para os dias de hoje.
A conversa ganha um tom mais sério quando nos contam como a morte do ex-presidente Madiba em 2013 só veio agravar os problemas que o fim do Apartheid não resolveu. Nos últimos anos, a corrupção e a impunidade assumiram novos termos. Dizem-nos que centenas de edifícios no centro de negócios foram ocupados por milícias (com milhares de desalojados) sem grande resposta das autoridades. Como os serviços públicos são deficitários ou inexistentes, a saúde e a segurança ressentem-se.
Contam-nos como todos conhecem alguém cuja casa foi assaltada, no caso deles foi mesmo a própria. Como a clivagem social é racial mas de classes mais do que nunca. Como as desigualdades são notórias numa metrópole desgovernada e que produz 30% da riqueza do país.
Ouvimos, interessados, mas a prova dos problemas sistémicos só nos chegará de duas formas.
Por um lado, a falta de segurança que os locais e as muralhas eletrificadas de cada casa nos transmitem. Durante a nossa estadia nunca teremos problemas e a zona onde estamos a ficar explicam-nos ser segura e dar para andar a pé até ao anoitecer. Mas além de recordarmos bem as estatísticas que classificavam a cidade durante décadas como das mais perigosas do mundo, todos nos parecem avisar do perigo iminente. Por exemplo, à saída do museu do Apartheid quando, ao nos preparamos para caminhar 800 metros até ao McDonalds (esta é a primeira cidade com McDonalds desde que saímos do Egito), dois seguranças nos demovem imediatamente já que ali são comuns assaltos e espancamentos.
Por outro, os cortes de energia. "Temos sorte hoje não haver corte de energia agendado. Amanhã vamos poder testar a bateria e gerador que instalámos para as falhas de energia quase diárias." explica-nos Jaco. "Por vezes os cortes são vários durante o dia e portanto o tempo em que temos energia nem permite à bateria carregar". De facto aquele será o único dia em que não experienciamos um corte de energia de duas horas, entre as 18h e as 20h.
Ficamos à conversa descontraídos até a hora lembrar que amanhã é dia de trabalho. Para nós, é dia de cumprir o que ao jantar só sonhámos.
A primeira noite marcava o início de três dias a conhecer esta metrópole africana. A enamorar-nos da sua beleza urbana e espaços verdes, da sua história e cultura. Uma relação platónica, por entre muros e Ubers, a evitar as multidões e os subúrbios como não costumamos. E sabendo sempre que, no final de cada dia, regressávamos aos nossos couchsurfers para uma mesa de gastronomia internacional e um serão de boa conversa.
Projeto Prá frente
O Projeto Prá Frente foi criado por dois jovens engenheiros, com a intenção de conhecer (e partilhar) uma perspetiva completa do Sudeste Africano, focando-se não só no seu património deslumbrante, mas também nas suas pessoas e naquilo que tem para oferecer para o futuro.
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