Já tinha feito duas viagens de comboio no Myanmar mas em classe alta, a que tem assentos mais confortáveis. Nunca me tinha aventurado na classe baixa porque as viagens que fiz foram muito longas. Até que decidi que iria de Bago para Kyaikto de comboio. A viagem foi feita durante a noite e só durava cerca de 3h, que para mim era bem pouco tendo em conta que as viagens anteriores duraram mais de 10h. Decidi que passar 3 horas num banco de madeira duro não seria assim tão mau, e mais do que isso, queria experienciar o ambiente da carruagem mais barata que tinha na ideia ser mais caótica.
Os bilhetes de comboio no Myanmar não podem ser comprados online. É necessário ir para a estação antecipadamente e comprar na bilheteira. Por norma, mesmo que não falem muito inglês, os senhores do comboio são super simpáticos, e lembro-me de ver um letreiro em todas as estações a dizer algo como “tomem conta dos turistas”. Nunca senti receio de andar de comboio no Myanmar, sei que haverá sempre alguém que vai ajudar.
Dirigi-me à bilheteira para comprar o meu bilhete de classe baixa, mas parece-me que eles não gostaram muito da ideia. Foram bastante insistentes para comprar um bilhete em classe VIP e mostraram-se muito admirados por querer ir na classe baixa, como se por ser turista, não me pudesse aventurar numa carruagem desconfortável… Depois de me questionarem várias vezes se tinha a certeza que queria classe baixa, entre risos e comentários entre eles, lá me venderam o bilhete, sem antes fazer questão de perguntar de onde era esta maluca que quer comprar um bilhete para o desconforto. O bilhete na classe baixa é extremamente barato. Alguns cêntimos são suficientes para pagar uma viagem que dura cerca de 3h e percorre aproximadamente 100 km.
Não havia mais nenhum estrangeiro na estação de comboios de Bago, nem tão pouco tinha eu visto um enquanto estive na cidade. Atraio algumas atenções, mas mesmo assim os birmaneses são discretos. Quando o comboio chega tenho ajuda para encontrar a minha carruagem e o meu lugar. Assim que entro no comboio, a discrição já não é assim tanta. Tenho imensos olhares colocados em mim como quem se interroga “o que está um turista a fazer aqui?”. Sento-me. Noto que a senhora do banco ao lado está fixada em mim, mas não olho. Janto ali mesmo um arroz frito que tinha comprado para a viagem. Sei que me olha mas evito-a. Assim que acabo de comer, lá cruzo o olhar com o dela. É então que me esboça o maior sorriso de sempre e oferece água. Agradeço imensamente mas rejeito. Forma-se um género de burburinho com todos os passageiros à volta. Sei que falam de mim e da minha presença ali. No entanto as suas expressões são tão acolhedoras e carinhosas que não me sinto de todo desconfortável. Rimos enquanto me pergunta coisas em birmanês e lhe aceno com a cabeça pois não entendo nada do que diz. Mesmo assim ela continua a falar comigo sabendo que não conseguirei falar com ela. Dediquei-me a esboçar sorrisos que saiam genuinamente tal era o ambiente acolhedor que se gerou em meu redor. Passamos muito tempo a rir entre nós enquanto ela ocasionalmente me oferecia umas coisas.
Na classe baixa nem todos têm um lugar para se sentar. A carruagem vai lotada e há pessoas sentadas em todo o lado. O número de insetos que vai entrando janela conforme se torna mais escuro vai aumentando. Começa a ficar frio também pois as janelas não fecham completamente. As pessoas preparam as suas camas no chão e os corredores ficam ocupados por passageiros a dormir. Outras dormem debaixo dos bancos estendidas no chão. A meu ver parece bem mais confortável do que dormir naqueles assentos bem desconfortáveis.
Adorei a breve viagem de comboio que me fez sentir que andar na classe mais baixa é ainda melhor do que na classe mais alta, já que a experiência é mais real, mais conectada com o povo e mais marcante. Por norma as experiências mais desconfortáveis são as mais marcantes…
Estava um bocado apreensiva por chegar depois das 11h da noite à estação, mas, como sempre, há alguém de mota à espera do comboio e de um passageiro para poder fazer um dinheiro. Despedi-me da amável senhora e dos companheiros mais próximos de viagem com largos sorrisos gratificantes e fui numa mota para o hotel mais próximo.
No dia seguinte o meu destino é a “Golden Rock”. Uma rocha dourada no topo de uma montanha que é sagrada para os birmaneses que a comparam a um milagre de Buda, e a sua forma com a cabeça rapada dos monges. Realmente é incrível como aquela rocha paira ali no topo só com uma pontinha assente em terra.
Chegar lá não foi fácil. No hotel não souberam dizer como fazer para lá ir ter, portanto tive de andar pela rua a perguntar. Acabei por ser aldrabada porque não encontrei a paragem de autocarro local. Aqui só os locais sabem onde eles param, não há sinalização, nada que me faça descobrir por mim própria onde parará o autocarro. Acabaram por me dizer que tinha de ir de mota para a paragem de autocarro, depois na paragem já me disseram que afinal o autocarro vai demorar muito tempo a partir até que me convenceram a ir de mota o que me custou umas 10 vezes mais. Fiquei furiosa porque me disseram uma coisa e afinal foi outra, mas não tinha opção pois estou dependente do que me dizem… Não há muito na web sobre como chegar à “rocha dourada”, tenho de confiar no que me dizem.
Apesar do rapaz ser simpático, como me senti enganada não o retribui e disse que se podia ir embora, que não esperasse por mim para me levar de volta, que é sempre o que tentam fazer.
Agora tinha de entrar num camião de transportes com a carroçaria transformada em tantos assentos quantos possíveis, para que carregue quantas mais pessoas der, acamadas tal qual sardinhas. Encontrar o local de partida doa camiões não foi problema porque havia imensos camiões a sair e muita gente lá perto. A espera não foi longa. A carroçaria tem várias tábuas de madeira que fazem de assentos e o camião parte quando já não cabe mais uma alma, literalmente.
A viagem promete, e quando arrancamos já vou de sorriso nos lábios. O camião vai subir a montanha por entre curvas a contra curvas, a uma velocidade considerável. Os camiões não cruzam a mesma estrada com parceiros em sentido contrário. Temos de esperar que desçam os que estão a voltar para podermos subir livremente e de pé no acelerador. A viagem é tal qual uma voltinha na montanha-russa. As pessoas vão gritando conforme vamos subindo e o baloiçando para a esquerda e para a direita tal como numa montanha-russa. Toda a gente naquele camião se vai a rir e a experiência tem todo um ambiente muito divertido e excitante. Já valeu só por esta voltinha na parte de trás deste camião adaptado.
Depois da viagem atribulada chegamos ao topo que está repleto de fiéis que vêm adorar a Rocha. A vista é linda já que estamos na montanha mais alta ao redor.
Na “rocha dourada” estão homens a colocar folhas de ouro como oferendas fazendo com que esta nunca perca a tonalidade dourada. As mulheres não lhe podem tocar. Não é a primeira vez que vejo esta discriminação de sexos no Myanmar. Já estive em outros locais em que só os homens podiam aceder, portanto as senhoras só podem olhar para a tal rocha dourada e tirar fotos, muitas fotos.
Sei que na cultura birmanesa tem vários conceitos e crenças que muito divergem de nós. Ainda há pouco usaram as “saias” femininas nos protestos mais recentes contra a tomada de posse dos militares, e penduraram-nas em cordas nas ruas, já que segundo os birmaneses, se os homens passarem por baixo de algo que vista as “partes baixas” da mulher, isso lhes tira a virilidade.
Depois de já estar satisfeita com a minha visita à Golden Rock, voltei para a base da montanha do mesmo modo, no tal camião. A subida é mais divertida!
Chegando ao final da viagem, não fazia ideia de como voltar para a cidade que ainda está longe. Decido perguntar na rua, mas quase que fogem de mim com timidez. Esboçam aqueles sorrisos tímidos quase que amedrontados de me dirigirem a palavra, mas não tenho outra hipótese senão tentar comunicar com alguém que me “empurra” para outro alguém e outro que porventura seja menos tímido já que não falam inglês. Acho engraçado e fofo a forma tímida como reagem. Lá lhes mostro no telemóvel no nome do local para onde quero ir e por sorte tenho um autocarro mesmo a 200 metros prestes a partir. Levam-me até lá e foi assim que descobri que paguei 10 vezes mais para chegar ao mesmo local de mota. No autocarro local, que não passa de uma carrinha aberta com tábuas de madeira, todos se mostram muito surpreendidos com a minha presença. Decerto não costumam ver muitos forasteiros, ainda menos no meio deles em um autocarro local.
Foi um dia cheio de desafios e experiências únicas que me fizeram gostar ainda mais do Myanmar.
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