Texto: Carla Lourenço / Fotografia: João Pedro Augusto

Águas Calientes cresceu à volta do Urubamba, envolta em montanhas. Dificilmente diria que tem mais do que uns poucos pares de ruas paralelas, umas dezenas de restaurantes e bancas de roupa. Dificilmente diria, também, que nos deixaríamos impressionar pelo cair da escuridão nesta povoação. Mas não conseguimos escapar. De uma das pequenas pontes que atravessa o rio, olhámos o céu salpicado a estrelas que já não existem. Entranhou-nos uma sensação de pequenez. Questionámos o nascer e o pôr-do-sol, as horas de luz, a orientação geográfica. Os nossos olhos reflectiam o brilho da lua. Aos nossos pés o curso corria barulhento para destino incerto. Se as águas eram frias, era certamente a paisagem que nos aquecia.

A noite, que seria de descanso, revelou-se fastidiosa e demasiado longa, interrompida continuamente por acessos de mal-estar que insistiam roubar horas de sono ao corpo. Esgotou-se a energia. Senti-a abandonar-me como uma roupa que se despe e se atira para o chão de cansaço, amarrotada, sem vida. Eu habitava um objecto inanimado que não reconhecia como meu. “Que braços são estes?” Instintivamente, o que sobrava de mim precipitou-se para o chão da casa de banho, puxou os cabelos para trás, debruçou-se na sanita, vomitou e chorou baixinho de dores. A decadência em pessoa, os restos de uma alma de olhar vazio ajoelhavam-se a um João preocupado. Sentou-se na cama esperando. Lavei a cara, lavei os dentes, procurei o conforto de um abraço, algo que me devolvesse à vida. Quis ser pequenina, enrolar-me em novelo, os fios apertados carinhosamente e adormecer com a cabeça no peito do amor. Mas não dormi.

A madrugada cinzenta abrir-se-ia mais tarde, como eu. Sete da manhã. Descemos do autocarro às portas de Machu Picchu, esse terreno sagrado, pisado antes de nós por tantos outros. A entrada que dá para a cidadela acumulava grupos de turistas. Bilhetes em papel encadernavam passaportes e vice-versa. Faziam-se as últimas confirmações de horários. Esperava-se pela permissão.

Machu Picchu
Chegada à Machu Picchu créditos: João Pedro Augusto

Virámos à esquerda para uma passagem alternativa que nos levava primeiro a subir a montanha velha: Machu Picchu, como ficou mundialmente conhecida. Um caminho em caracol, forrado a pedras gastas e ladeado de vegetação, erguia-se num declive demasiado acentuado para o que tinha sido a noite passada. O João, sempre paciente, esperava-me no topo. Levou-me pelas mãos umas tantas vezes e repetia, como os degraus que teimavam em nascer do solo, que eu tinha de comer, que não podia continuar mais. Fiz-lhe a vontade com uma maçã que tirei do fundo da mochila, comprada em Lima antes de partirmos, mas continuei. Continuei a esforço, gasta como as tais pedras, até chegarmos a metade da montanha. Aceitei parar aí. Aceitei que desistir, nesse momento, seria continuar, mais tarde. Aceitei os meus limites, teimosa, resignada, mau feitio. Acho que aceitei, principalmente, pelo João, para não lhe comprometer a viagem e as experiências que estavam para vir. Descemos então. Fomos parando para resgatar a luz que se deitava nas montanhas à nossa volta. A câmara registava continuamente os passos, os cabelos esvoaçantes, as nuvens, o sol que acenava. Aqui e ali, perdi o João de vista, que se deixava demorar em mais um miradouro com vista para o indescritível. As forças chegavam-me aos poucos, a cor voltava-me à cara, mas terão sido as piadas desajeitadas que denunciaram a minha recuperação.

Machu Picchu
Machu Picchu créditos: João Pedro Augusto
Machu Picchu
Machu Picchu créditos: João Pedro Augusto

Entrámos na cidadela curiosos, ainda ofegantes. Tapámo-nos como pudemos para fugir ao calor. Os muros alinhavam-se, quais linhas paralelas, e formavam labirintos onde nos extraviámos. O suposto sentido único existia apenas nas placas de madeira que distinguem os quatro circuitos coloridos. Subimos e descemos. À nossa frente as plataformas agrícolas onde tanto a terra deu. À esquerda as moradias agora sem telhado deixavam adivinhar famílias inteiras a jantar depois de um longo dia no campo. O templo do sol, os locais de trabalho, os quintais onde as lamas pastavam - e pastam ainda hoje.

Machu Picchu
Machu Picchu créditos: João Pedro Augusto

Andámos em círculos imperfeitos, contorcendo-nos nos corredores apertados. Voltámos ao ponto de partida. “Recomecemos”, pensámos. Assim foi. Por fim, a Casa do Guardião. As duas horas de exploração levaram-nos à vista clássica que todos reconhecem ser Machu Picchu. A montanha Huayna Picchu erguia-se bela, implacável, diva, deixando que a luz a beijasse nas bochechas verdejantes. Olhava-nos tranquilamente à distância. "Que bom que vieram", teria dito se nos falasse. "Esperei-vos durante anos, já estava na hora". E nós, envergonhados, desviaríamos o olhar para o chão, balançaríamos as pernas desajeitadamente e o João balbuciaria algo como "Perdemo-nos no caminho". Eu certamente acusaria um "Estava à espera dele". Na ausência desta conversa, ficámo-nos por um silêncio sorridente. Cumpriu-se o sonho, cumpriu-se o abraço. Olhámos uma vez para trás, inspirámos fundo e despedimo-nos de Machu Picchu.

Machu Picchu
Machu Picchu créditos: João Pedro Augusto

Nota editorial: Face à atual crise política no Peru, Machu Picchu encontra-se encerrada aos turistas, mas este relato de viagem retrata um período temporal anterior aos protestos.

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