O tempo custa a passar neste barco cheio de gente e com o ruído intenso dos motores. A previsão é para 10 horas de viagem, com duas ou três paragens breves para deixar pessoas noutros portos. A ingestão de água é altamente doseada e o cheiro a fossa relembra-me o motivo pelo qual faço questão de não ir à casa de banho durante quaisquer viagens em transportes públicos. Miraculosamente, reparo pela primeira vez que a máscara também protege, de certa forma, contra tamanhos maus odores.

São perto das duas da manhã quando desperto com os solavancos do barco, acompanhados de várias luzes no exterior. Funcionários começam a caminhar para diante e para trás no convés, atarantados, e à primeira impressão pensaria que a nossa embarcação tinha avariado. A má sorte está de outro lado que não o nosso, uma outra embarcação, semelhante, encalhou nas águas baixas do rio - aqui tão baixas que há inclusive pessoas de pé a caminhar sobre alguns bancos de areia. Seguem-se todo o tipo de manobras possíveis e imaginárias: cabos para reboque, pessoas a puxar e a empurrar, movimentos de água, até ao ponto que, ineditamente, o nosso barco projecta repetidamente toda a sua face lateral contra o outro na tentativa frustrada de o soltar. Nada funciona, e após cabos partidos e exasperação dos tripulantes é altura de aceitar a realidade - continuar o nosso caminho e esperar que a maré suba.

Já amanheceu e este atraso prolongou a duração da viagem, já de si pesada. O calor começa a intensificar-se, e para quem tinha saído de dois dias na selva ainda sem hipótese de tomar duche, lavando-se e refrescando-se minimamente com toalhitas biodegradáveis, o desconforto começa a tornar-se evidente.

Chegados a Nauta, é necessário agora fazer uma hora de caminho até Iquitos. Mais um tuk tuk até ao "paradero", de onde se preparam para sair mini-vans com várias pessoas. Mais 30 soles e garanto o meu lugar no fundo da carrinha, contra uma janela por onde possa respirar ar fresco. Mais 45 minutos de estrada e nova avaria, desta vez um pneu furado que é necessário trocar. Estão 32ºC e uma humidade de perto de 70%. Uma rapariga sai de uma das cabanas feitas de cana, madeira, e telhados de colmo e aproxima-se para vender garrafas de água que, apesar do calor intenso e estarem bem fresquinhas, reparo que não têm rótulo e que a tampa já tinha sido aberta previamente. Estas são para mim duas "red flags" básicas e que me fazem adiar a compra de uma garrafa por mais algumas horas, pois uma gastroenterite seria a última coisa de que precisaria nesta altura.

Iquitos
Iquitos créditos: Julien Gaud / Unsplash

A expectativa para Iquitos é grande, sobretudo gerada pelo facto de pouco ter lido sobre a cidade. A confusão e tráfego iniciam-se a mais de 10 quilómetros de distância em relação à cidade, assim como vão surgindo armazéns e outras infra-estruturas de grandes dimensões.

Iquitos não é, de todo, aquilo que esperava. Trata-se de uma cidade de mais de 580 mil habitantes, fundada de raiz no meio da selva profunda da Amazónia Peruana onde há tudo, como se uma enorme estrada a ligasse ao resto do mundo, apesar de tudo ter de cá chegar de barco ou de avião. E com tudo falamos em carros e autocarros, móveis, material de construção, painéis de néon e tudo mais que nos possamos lembrar e que é comum em qualquer cidade. É difícil imaginar que estamos no meio da floresta amazónica, mas fácil de perceber que esta cidade é um verdadeiro atentado à natureza.

Iquitos começou a ser desenvolvida por volta de 1730, graças à exploração da borracha. A indústria cresceu rapidamente e deu o impulso para o desenvolvimento da cidade, repleta de investidores e trabalhadores. As populações indígenas circundantes foram aos poucos sendo dizimadas, quer por extermínio, por trabalho escravo ou por doenças trazidas de outras regiões. A prosperidade manteve-se até ao inicio do séc. XX, quando explorações semelhantes começaram na Ásia, ganhando importância pela muito maior acessibilidade, o que diminuía consideravelmente os custos de extracção e transporte. Inicia-se o declínio de Iquitos que permanece aos dias de hoje.

Uma cidade atabalhoada e muito suja, com prédios decadentes e onde os sinais de outros tempos se fazem notar nos traços coloniais das janelas ou nos azulejos portugueses, símbolo de status. Pelas ruas de alcatrão esburacado deambulam poucas pessoas, talvez por ser Domingo. Em qualquer outra cidade diria tratarem-se de toxicodependentes e sem-abrigos, o que também aqui não está longe da verdade - parte da economia paralela de Iquitos vem do turismo do circuito Ayuyaschka, do jogo, da droga e da prostituição. A única avenida minimamente mais desenvolvida, e ainda assim com sérios problemas de preservação de edifícios históricos (cerca de 10), é a da marginal frente ao rio, por onde se volta a estender a Amazónia.

Hotel Casa Morey
créditos: Hotel Casa Morey

Fico hospedada no Hotel Casa Morey, sem sombra de dúvida, o edifício mais "composto" de toda a cidade. No seu interior somos automaticamente transportados para outros tempos, para filmes históricos de épocas coloniais em que as senhoras ainda usavam chapéus de sol feitos de tecidos delicados e os homens fato, cartola e cigarrilha. As várias paredes repletas de azulejos de motivos familiares fazem a ponte para a típica casa portuguesa, e o tapete que se estende até ao andar superior tem exactamente o mesmo padrão do da casa dos meus pais. Na mesa de cabeceira da cama, um telefone "à antiga", de pega clássica e números em rodinha.

Iquitos é ponto de entrada na Amazónia ainda mais profunda, com excursões diárias que saem do seu porto, também elas vítimas dos constrangimentos provocados pela pandemia. Será, talvez, a entrada num "Novo Mundo" para quem ainda não teve uma experiência deste género, mas sem outros motivos que justifiquem a sua visita.

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