"Para mim, era algo crucial", diz Maya, uma americana de 17 anos. Maya viveu sempre em Maryland, Estados Unidos, mas queria reconstituir a dolorosa história da sua bisavó judia.
A AFP recolheu os testemunhos destes novos cidadãos da República da Áustria, que beneficiaram de uma alteração na lei que, desde o dia 01 de setembro, passou a oferecer um passaporte aos descendentes das vítimas do Holocausto.
As razões são várias, desde as afetivas ao dever de salvaguardar a memória, ou o desejo de fazer justiça, que levaram os americanos Maya e Noah, o israelense Gal, o argentino Tomás e o britânico Robert a reivindicarem esse direito e a reconquistar a nacionalidade tirada dos seus ancestrais.
Exílio forçado
As histórias começam com as migalhas que os alcançaram.
O exílio forçado de Stella Rinde Coburn, de quem Maya Hofstetter é descendente, ocorreu em agosto de 1939, depois que Adolf Hitler anexou o seu país natal ao Terceiro Reich a 12 de março de 1938.
O avô do israelense Gal Gershon deixou a Áustria um ano antes. "A decisão não foi dele", realça Gershon, diretor de vendas da transportadora aérea El Al, de 46 anos.
"Quando ele tinha 13 anos, os pais colocaram-no num barco, sozinho", a caminho de um orfanato na Palestina. Por muito tempo, não teve notícias da família, até que soube que os parentes morreram nos campos de concentração.
Antes da anexação da Áustria — o Anschluss — ,o país alpino tinha 200.000 cidadãos de origem judaica. Destes, mais de 65.000 foram mortos durante o Holocausto. Para sobreviver, a grande maioria teve de fugir, indo para Xangai, ou Buenos Aires, por exemplo.
O pai de Tomás Diego Haas conseguiu embarcar para a Argentina, após subornar um diplomata, conta o sul-americano de 60 anos, que exerce uma profissão bem vienense: psicanalista.
Já o jovem Noah Rohrlich, de 25 anos e residente de Washington, conta que o avô deixou o país aos 16 anos, antes do início da guerra. O avô começou a estudar em Harvard em 1946, quatro anos depois os pais faleceram num campo de concentração.
"Saber de onde viemos"
"Sempre perguntávamos como era morar em Viena, mas nunca recebíamos uma resposta muito detalhada", lamenta o americano de cabelo preto curto, mostrando à AFP o passaporte dos seus bisavós Egon e Cilly, com um imponente "J" estampado em vermelho (para "judeu").
Poucos são os refugiados que contaram em que condições tiveram de partir. Era necessário deixar a Áustria para trás e reconstruir uma vida inteira noutro lugar.
Para os descendentes, a obtenção da nacionalidade é, muitas vezes, uma forma de restabelecer os laços com os ancestrais e com o país de origem.
"Agora, ser cidadão austríaco dá-me a sensação de estar mais próximo do meu avô", diz Noah, que escolheu a mesma profissão que ele: engenheiro.
Gal menciona "uma emoção muito forte". "Foi uma forma de encerrar a história, de corrigi-la em homenagem ao meu avô", explica.
Com 17 anos, Maya podia ter outras preocupações, mas "o passado afeta o presente", assegura. "Temos que saber de onde viemos para termos esperança de nos tornarmos alguém bom".
A mãe, Jennifer Alexander, investigadora na área das ciências sociais para o governo dos Estados Unidos, também cita motivos políticos. "Os meus avós ficariam chateados de ver os Estados Unidos nestes últimos quatro anos", garante.
Já o britânico Robert G.W. Anderson diz estar "feliz" por poder reconectar-se com as suas raízes austríacas. Robert comenta que o Brexit também levou-o a recuperar a nacionalidade austríaca, já que o divórcio do Reino Unido da União Europeia "chocou"-o.
Regressar
A próxima etapa para estes novos cidadãos será visitar a Áustria, um país de 8,9 milhões de habitantes.
"Nunca fui e quero muito visitá-la, espero que com os meus filhos", diz Gal.
Maya, por sua vez, "sonha em estudar lá, aprender a língua, a cultura".
Noah gostaria de encontrar o apartamento onde o avô morava. "Quem sabe também dar um passeio no parque Esterhazy, que fica logo à frente. Tinha um ringue de patinagem de que gostava muito, não sei se ainda existe".
A grande maioria dos entrevistados não tem a intenção de se mudar para a Áustria, mas a maioria deseja exercer o direito de voto e tentar encontrar parentes distantes.
Alguns perguntam-se o que as partes interessadas pensariam.
Noah deu como certo que pediria a naturalização, convencido de que isso deixaria o avô "feliz". Tomás Diego Haas imagina que o pai "teria sentimentos contraditórios".
"Ele tinha memórias maravilhosas das suas caminhadas na floresta vienense", ou das idas à ópera "duas ou três vezes por semana", mas "ele não conseguia perdoar porque a vida dele foi roubada".
"Não acho que minha bisavó teria ficado muito feliz", reflete Maya. "Ela pensaria que a havíamos traído. Bem, talvez não até esse ponto, mas ficamos do lado daqueles que a expulsaram".
"Pedir perdão"
Das centenas de milhares de descendentes elegíveis para este programa, cerca de 1.900 - principalmente de Estados Unidos, Reino Unido e Israel - já obtiveram os passaportes, uma porta aberta à União Europeia (UE), da qual a Áustria faz parte.
Até a lei ser aprovada, a cidadania não podia ser transferida para os descendentes, lamenta a secretária-geral do Fundo Nacional Austríaco para as Vítimas do Nacional-Socialismo, Hannah Lessing.
Diante do que interpretavam como uma injustiça, "era nosso dever responder com humildade ao desejo deles", sublinhou à AFP o chanceler austríaco, Sebastian Kurz (conservador), que propôs a reforma.
"Vamos ser claros: nada pode apagar a dor. A única coisa que podemos fazer é pedir perdão com franqueza. Fiquei comovido ao ver que este gesto de reconciliação foi amplamente aceite", afirmou o chefe do governo.
As famílias entrevistadas pela AFP aplaudiram a iniciativa austríaca e as calorosas boas-vindas reservadas a elas por parte do pessoal das representações diplomáticas austríacas dos seus respectivos países.
Parece que depois de três gerações, a Áustria tomou consciência da violência da sua história.
Ansiosa por "se desculpar por uma profunda vergonha", a Alemanha fez o mesmo em março, quando decidiu facilitar os procedimentos administrativos.
Para o historiador Oliver Rathkolb, esta mudança de atitude é "um sinal importante" que mostra que a sociedade "leva a sério as consequências da Shoah (holocausto)" a longo prazo.
Durante muito tempo, a Áustria fingiu passar-se por vítima do nazismo, negando a cumplicidade com muitos dos seus nos crimes do Terceiro Reich, apesar do fato de que, após o conflito, terem sido adotadas sete leis de restituição (de obras de arte, imóveis e outros bens).
Em meados da década de 1980, um olhar crítico começou a emergir e a ganhar força, quando Kurt Waldheim, ex-oficial da Wehrmacht, apresentou a sua candidatura à Presidência do país.
Além disso, em 1983, o Partido da Liberdade Austríaco (FPÖ), fundado em 1956 e liderado nos seus primeiros anos por um ex-oficial da Waffen-SS, entrou no governo pela primeira vez.
Voltou a governar em coligação entre 2000 e 2005 e entre 2017 e 2019, quando esta nova lei da nacionalidade foi aprovada, graças a um grande consenso.
Depois de rejeitar por muito tempo o que entendia como autoflagelação, a extrema direita austríaca moderou a sua posição e deixou de se opor totalmente às iniciativas de reparação, a qual acabou por apoiar, como parte de um processo de limpeza da sua imagem.
De Buenos Aires, Tomás Diego Haas lembra amargamente a frieza do funcionário que o recebeu quando tentou reclamar os papéis em Viena há alguns anos.
"O funcionário repetiu-me três vezes, com aspereza exagerada, que eu era filho de um argentino. Foi horrível, não queria ouvir que o meu pai e, antes dele, meu avô, eram austríacos", desabafou.
Agora, os austríacos, uma população de maioria católica que deve muito da sua riqueza cultural aos judeus, preferem enfatizar para os seus filhos que eles não se "esqueceram" e que "eles podem voltar quando quiserem", diz Hannah Lessing.
Freud, "knödel" e um piano
Foi graças à minoria judia que Viena tornou-se o caldeirão artístico da Europa a partir do final do século XIX.
O escritor Stefan Zweig, o psicanalista Sigmund Freud, o músico Arnold Schönberg... A maioria dos intelectuais que colocou a capital da Europa Central no mapa pertencia à burguesia judia e às classes médias.
Um "mundo de ontem", como escreveu Zweig, de onde vem o "tão britânico" Mister Anderson, que recebeu a AFP na sua casa em King's Lynn, no leste da Inglaterra, repleta de móveis vienenses.
Aos 77 anos, Robert Anderson é um verdadeiro produto dessa elite austro-húngara: o avô dirigia uma grande petroleira e fugiu para Londres com a família inteira.
Como um herdeiro digno, o neto assumiu a gestão do Museu Britânico em 1992. Os londrinos devem a Robert o Queen Elizabeth II Grean Court, o espetacular pátio interno projetado por Norman Foster e inaugurado pela rainha Elizabeth II em 2000.
E, mesmo que não seja o idioma, todos guardaram algo da Áustria.
Gal Gershon diz que o avô, que "nunca partilhou memórias de infância", transmitiu-lhe o gosto pelo "Marillen Knödel", uma espécie de croquete recheado com damasco, receita típica do vale Wachau. Hoje, costuma cozinhar com os filhos, como "uma pequena homenagem à sua memória".
Robert Anderson tem um piano vienense centenário, da casa Bösendorfer; Tomás Diego Haas, um casaco de lã comprado durante a sua primeira ida a Viena.
"O meu pai dizia-me que eu nunca entenderia Freud, porque o leio em espanhol", diz Tomás Diego Haas, a brincar, mas esclarece: "Eu tenho uma cultura e educação austríacas".
"Sempre fui austríaco. [Na Áustria] sinto-me em casa. A diferença é que agora a Áustria reconhece isso", conclui Ditch.
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