A culpa é do Fernão de Magalhães. Em 1520, durante a sua viagem para oeste tentando chegar às Molucas, quando contactou pela primeira vez com os nativos da região mais meridional das Américas decidiu chamar-lhes Patagónes – pelo menos, foi esta a versão divulgada por Antonio Pigafetta, o geógrafo e cronista que seguia na expedição e sobre ela deu à estampa, em 1525, o Relazione del Primo Viaggio Intorno Al Mondo. O porquê de tão estranho nome permanece um mistério, já tentado decifrar por muitos mas sem que nenhuma das teorias tenha realmente vingado como definitiva. Ainda assim, a designação pegou e o seu conceito foi ampliado, passando a denominar toda uma enorme região da América do Sul: a Patagónia.
Nome estranho e fascinante para uma região que, pela sua lonjura, desperta a imaginação, e que eu há muito tempo desejava conhecer. São as terras agrestes do “fim do mundo”, os mares gelados pela proximidade do Pólo Sul, os picos montanhosos que só os muito aventureiros se atrevem a conquistar, os animais que só ali podemos ver no seu habitat natural. Uma viagem que eu sabia que me iria deixar memórias vívidas e duradouras de lugares para os quais “perfeito” é o único adjectivo que espelha a realidade.
A Patagónia é uma área imensa com mais de um milhão de quilómetros quadrados (cerca de 11 vezes o tamanho de Portugal) que se estende desde o arquipélago da Terra do Fogo, no extremo sul do continente americano, até Puerto Montt e o lago Todos Los Santos, no Chile, e os rios Colorado e Barrancas, na Argentina. É atravessada longitudinalmente pela Cordilheira dos Andes, que também serve de fronteira natural entre os dois países excepto na extremidade meridional, pois o Chile reclamou para si toda a área banhada pelo Estreito de Magalhães e uma parte da Ilha Grande da Terra do Fogo, além de outras ilhas mais a sul.
Planear uma viagem independente num território tão extenso e distante, sem nunca ter posto os pés na Argentina ou no Chile e com limitações de tempo (e de orçamento) não é tarefa fácil. Foram muitas horas de pesquisa, e foi preciso ponderar bem os meus objectivos, para seleccionar a área que iria conseguir visitar durante três semanas – o período de férias que pude reservar para esta espécie de aventura.
Planeamento
Os objectivos estavam definidos: ver montanhas, glaciares e pinguins, e caminhar tanto quanto possível. A época do ano também não foi difícil de escolher: Novembro, na Primavera austral, por ainda não ser época alta mas as temperaturas já serem suficientemente simpáticas. A parte mais complicada foi seleccionar a área e os locais que queria mesmo visitar, e como me deslocar entre eles.
Ushuaia e a Terra do Fogo eram pontos obrigatórios, assim como o Parque das Torres del Paine e o glaciar Perito Moreno. Juntei El Chaltén à lista, por ficar na base do Fitz Roy e não muito longe de el Calafate (porta de acesso ao Perito Moreno), e porque é zona de excelência para caminhadas. E finalmente incluí Punta Arenas, no Estreito de Magalhães, por ser um ponto intermédio na ligação entre Ushuaia e as outras localidades mais a norte.
Sei que parece pouco para três semanas, mas não é. As distâncias entre estas localidades são enormes e perde-se muito tempo nas deslocações entre elas. Além disso, como já sabem, gosto de viajar com calma, para absorver o mais possível daquilo que vejo. Há que contar ainda com o facto de as caminhadas em terreno montanhoso serem extremamente cansativas, e é preciso reservar tempo para descansar.
Alugar carro para a quase totalidade da viagem foi uma primeira hipótese, que pus rapidamente de lado ao perceber que não iria conseguir fazer um percurso circular e seria sempre necessário voltar a fazer muitos quilómetros para devolver o carro no mesmo lugar em que o alugasse. Iria perder muito tempo e tornar-se-ia extremamente desgastante. Além disso, nos últimos anos tenho tentado evitar usar o carro sempre que possível, não só no meu dia-a-dia como também nas minhas viagens. Dou primazia aos transportes públicos, excepto quando isso é inviável por alguma razão. Assim, a única alternativa que restava era usar o autocarro para me deslocar entre os vários lugares que queria visitar.
Outra decisão a tomar: onde começar e terminar a viagem? O percurso implicava saltar entre dois países, a Argentina e o Chile, e podia começar por qualquer um deles, mas optei por escolher voar para e de Buenos Aires. Tinha curiosidade em conhecer a cidade, e reservo Santiago do Chile como ponto de ligação para outra grande viagem que está nos meus planos (ainda sem data). E embora a maior parte das pessoas faça a viagem de norte para sul, eu decidi começar o percurso na Patagónia pelo ponto mais longínquo possível, Ushuaia, para depois ir subindo.
Decidida a espinha dorsal da viagem, o primeiro passo concreto foi marcar os voos de ida e volta para Buenos Aires e o hotel nesta cidade, onde fiquei nos dois primeiros dias e também no dia antes de voltar a Portugal. Depois, e não menos importante, o voo de Buenos Aires para Ushuaia, e o de regresso a Buenos Aires saindo de El Calafate.
Com os dias que sobravam, organizei o roteiro – que teria de ser flexível, pois não encontrei muita informação sobre as ligações de autocarro entre as várias localidades (muito do que aparece na net está desactualizado, sobretudo porque os dois anos de pandemia levaram a algumas alterações na oferta turística). Teria de obter informações mais concretas quando chegasse a cada cidade, e organizar as estadias em função das ligações disponíveis para a cidade seguinte. Pela mesma razão, e também porque gosto da liberdade de poder ficar mais ou menos tempo em cada lugar, só marquei antecipadamente o alojamento em Ushuaia. Todos os outros foram marcados de véspera, ou quando já tinha comprado o bilhete de autocarro.
Uma das desvantagens de não ter carro para andar por estas paragens é que os parques naturais ficam muito longe dos locais onde há alojamento. Ushuaia fica a 13 km do Parque Nacional Tierra del Fuego, e da entrada deste parque até à Baía Lapataia são mais 11 km. O Torres del Paine dista 100 km de Puerto Natales, e o Perito Moreno está a quase 80 km de El Calafate. O único sítio onde conseguimos fazer tudo a pé, porque há muitos trilhos de caminhada que começam dentro dos limites da localidade, é El Chaltén. Por isso, é também necessário arranjar transporte para cobrir aquelas distâncias – dependendo dos casos, pode ser autocarro ou minibus, ou um tour, mas será sempre necessário comprar o bilhete ou reservar antecipadamente junto de um operador turístico.
Aliás, os próprios autocarros que fazem a ligação entre as cidades principais são todos operados por empresas particulares. Por vezes há mais do que uma por onde escolher, mas nem sempre, e os preços são praticamente idênticos, seja qual for o operador que se escolha. São autocarros muito confortáveis e seguros, e nas viagens mais longas oferecem snacks e bebidas.
Porque sei que este é um destino desejado por muita gente, encontram no meu blog mais informações e conselhos que podem ser úteis a quem estiver a pensar em ir até ao sul da Patagónia e à Terra do Fogo.
A Ana é a autora do blogue Viajar porque sim, onde uma versão deste artigo foi publicada originalmente, e escreve segundo as normas do antigo Acordo Ortográfico.
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