Percebi, finalmente, a última ‘fala’ da série da Netflix “Taboo” (tradução ‘Tabu’) de 2017: “Azores”. A série de tom soturno no século XIX britânico gira em torno do grande regresso do protagonista que, no final da série, refere o seu destino desejado: Açores. Mas não é isso que me intriga, sim o facto de ele denominar “Azores” como “o inferno” que ele procura. Ele é um viajante que procura soluções de livramento dos seus inimigos e conta com a terra açoriana para um parceiro misterioso. Na altura, eu não conhecendo ilha nenhuma dos Açores, fiquei a pensar que esta referência, numa série internacional, era pejorativa. Depois, acho que consigo entender dado que o protagonista James Delaney ainda não nos mostrou a sua aventura açoriana. Não houve, ainda, a nova temporada em vulcões lusitanos.
E, estando a falar de vulcões dos Açores e do ‘inferno’ a que a série se refere, talvez esteja certa quando penso no Inferno de Dante: é que ouvi dizer na Ilha de São Miguel que é preciso subir o labirinto vasto até ao topo dos vulcões para se conseguir ver luz acima das nuvens que estão, normalmente, lá em baixo. E remataram alguns nativos dizendo-me: “isto às vezes é como o Inferno”. Mas, sem tristeza ou torpor. O “lá em baixo” e o “topo” correspondem, voltando a analisar a imagem da obra dantesca, ao cume e ao final do Inferno desenhado por Dante. E esse ‘final’ é onde pecados sórdidos e mais graves moram. Na primeira tranche (no topo) da pirâmide dantesca estão os pecados perdoáveis. Assim, resumindo. Será que quanto mais nuvens, mais pecados somos?
Uma ideia interessante, pois, à medida que subia até à lindíssima Lagoa do Fogo, notei como as nuvens se iam desfazendo como algodão doce. E deste ponto alto via os ‘pecados’ simpáticos lá em baixo. Tudo nos Açores, na verdade, é paraíso, mas essa metáfora do ‘inferno’ – a propósito das nuvens – pode ter muito que se lhe diga. Claro que, lá, me lembrei muito da série Taboo e do mistério dos Açores. Outra característica deste inferno bonito está no fogo, nas caldeiras e nos vulcões que remetem para essa ideia de chamas infernais e caldeirões. Perguntei sobre a metáfora ao meu guia, ele desconhecia. Mas, mais um pouco, enquanto subíamos as estradas, disse-me que seria natural que uma pessoa no século XIX, que chegasse a estas terras de vulcões e lagoas de fogo (porque as águas azuis e verdes advêm da cratera que o vulcão gerou), pensasse que seria uma terra bizarra e com esse ideário demoníaco. Mas não o é. De facto, é o lado positivo do inferno dantesco, só por causa das nuvens e das caldeiras. Estas foram as que mais me captaram a atenção. E não só, basta ver o resumo de sugestões que considerei no último artigo, ainda sobre esta viagem.
Saí da Caldeira Velha renascida. O sono apodera-se de nós como um antídoto do stress. Aproveitei a sensação para explorar mais do que o turístico: procurei estradas das aldeias esquecidas, despovoadas. Vi o outono puro e quente de São Miguel de uma forma solitária, mas bendita. Claro que as vacas são todas amorosas e parecem querer juntar-se às fotos. E claro, fui espreitar cenários onde rodaram as temporadas de Rabo de Peixe. O nome da série que é o nome da zona também na Ribeira Grande. Ladeados só por mar e desejo de navegar até à “América” ou outros cantos do mundo. A principal igreja da série Rabo de Peixe onde as personagens do senhor Padre e do romântico Carlinhos contracenas algumas vezes, está ali imponente voltada para o marulho. O mar aqui não sussurra, o barulho é estrondoso e daí ser palco de grandes campeonatos de surf. Todavia, várias das cenas de Rabo de Peixe foram gravadas em cenários não originais de Rabo de Peixe, portanto noutras regiões da ilha para poderem retratar com maior acurácia o porto e atividade piscatória.
Sabia que, aliás, a Vogue, por vezes ‘usa’ cenários verdes e descampados da ilha de São Miguel?
Quis também atestar se era verdade a história da cocaína que alimentou delírios temporários nos aldeões: sim, tudo verdade. Conheci um universitário de Rabo de Peixe, o lugar. Percebi que as necessidades económicas são reivindicadas ainda, por comparação com outras zonas da ilha. Há relógios que estão parados no tempo, mas isso acompanha a beleza natural dos Açores.
Recomendo muito que se deliciem com as queijadas típicas, repito que escolham bem a caldeira dentro da caldeira velha, que reavivem sentidos na lagoa do fogo, e que conheçam o modus vivendi açoriano e resgatem histórias de quem, dali nativo, viajou para o Norte da América e volta todos os verões ao berço verde e azul. Nessas histórias encontramos sobretudo mulheres heroínas: foram cheias de sonhos, sem dinheiro, para o Canadá sobretudo. Hoje são professores universitários, são juízas (conheci uma bem de perto na ilha). E contaram, num congresso internacional em que pude estar como oradora convidada, como fazem a travessia constante até à ilha, perderam muito do português, trazem um inglês apurado, mas o sotaque açoriano – quando aparece no discurso - encanta o ouvido português. Um exemplo que me arrepiou:
Uma menina de Rabo de Peixe (e que me lembrou tanto a série como a conhecemos) emigrara para o Canadá com a família que, como muitas outras famílias, procuraram condições melhores por força da crise. Essa menina hoje é juíza no Canadá, uma das poucas portuguesas. Mas passou por muita discriminação enquanto migrante, por isso me fez chorar, no seio de um seminário científico, quando disse algo como:
“Só entendi que realmente eu tinha sido reconhecida como cidadã com histórico migrante, no Canadá, depois de ter superado cansaços académicos, sem os meus pais perceberem uma palavra de inglês, quando ouvi a atribuição do meu título de Juíza”. Tudo isto foi dito em inglês por ela, a única parte em açoriano surgiu depois: “foi quando ouvi Cidália Sousa, o meu nome em português, que eu soube que eu tinha conseguido e que a minha identidade açoriana nunca mais seria posta em causa”.
Lançou uma crítica e um repto e que faz todo o sentido num país e ilhas que enfrentam uma crise que nos coloca na cauda miserável da Europa quando temos tudo para sermos enormes: notou ela que os açorianos continuam a evitar o olhar face aos estrangeiros, sem sequer se recordarem que ela fez parte dali e faz. Pediu ela, a nós mais jovens, que não permitamos que tal aconteça e que para mudar nem sempre é preciso sair do lugar, mas melhorar o lugar e não admitir discriminação. Mas também não a fomentar contra o imigrante e contra o refugiado.
Não faz tudo isto tanto sentido face à situação sociopolítica, económica e cultural que estamos a viver? Que a série inspirada, afinal, em tudo isto nos ajude a fazer uma melhor viagem cultural.
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