Bilhete-postal por Célia Loureiro
Há muito que estava curiosa em relação a Marrocos. Sentia uma estranha proximidade para com o país cujas areias engoliu o nosso saudoso D. Sebastião, e a partir do qual nos chegou a civilização muçulmana em 711, com as laranjas e o zero. A viagem foi planeada um bocadinho em cima do joelho: decidimos que seria o presente ideal para celebrar o 18º aniversário da minha irmã. Cerca de mês e meio depois estávamos a embarcar, só mulheres, para o Norte de África.
Passei dias a treinar o meu La, shukran, porque supostamente um "não, obrigada" em arábico seria melhor acatado do que um simples "Non, merci". No entanto, como em tudo na vida, nada sai de acordo com o imaginado. Deixem-me começar por dizer isto: Marraquexe é uma cidade altamente turística, portanto diria que segura. Sim, é possível experienciar um bocadinho da cultura muçulmana, especialmente nós, que fomos no período do Ramadão, sim, convém estar atentos e sim, há choques culturais e coisas que me custaram a digerir, mas nem por um instante me senti insegura. Nem quando me vi no meio de um jardim deserto com três miúdas e quatro ou cinco matulões de túnica ao nosso redor. Mas já lá vamos.
Logo no primeiro dia, ficou evidente que Marraquexe vive do comércio e, para isso, os turistas são fundamentais. Fiquei com a impressão de que não seríamos de modo algum incomodadas, a bem de manter a fama de cordialidade e segurança. Por outro lado, o povo marroquino em si pareceu-me extremamente afável, acolhedor e inclusivamente atencioso, sem ser bajulador. Achei que há muita honra em regatear um preço e, depois de acordado, fornecer o troco exato sem mais deliberações. Por duas vezes vi-os abandonar a banca e correr pelo mercado com a nossa nota na mão, em busca de alguém que a trocasse, e nunca senti que "não voltaria a vê-la". Recebemos sorrisos, elogios a Portugal, sius e até um "É uma casa portuguesa, com certeza".
Nesse primeiro dia, enquanto me recolhi no frescor do quarto, as meninas foram até um hotel de quatro estrelas onde lhes foi dito que poderiam usar a piscina por 250 dirham cada. O rececionista do nosso hotel telefonou para o balcão e regateou o preço, e acabaram por as deixar entrar por 200. A minha irmã ficou espantada (e francamente deliciada) por ter de discutir o preço da utilização da piscina de um hotel de luxo. Passaram o dia entre outros portugueses e espanhóis, de biquini, a tomar bebidas (sem álcool) ao sol.
O lado menos positivo foi o facto de realmente termos de estar atentas a cada pormenor do discurso. Isto é, parece-me que, uma vez estabelecido um acordo oral, o mesmo será cumprido. Porém, se puderem ocultar alguns detalhes, o mal é nosso por estarmos a pensar na morte da bezerra. No segundo dia decidimos ir visitar os jardins Majorelle, coisa que não me entusiasmava por aí além, e que ficava a cerca de 40 minutos a pé da Medina. O nosso anfitrião aconselhou-nos a chamar um táxi e informou-nos de que o preço justo seriam 50 dirham. O primeiro taxista que encontrámos na Medina disse-nos que fazia 75. Dissemos-lhe que estávamos informadas de que o justo seria 50. Do outro lado da janela, em segunda fila, um personagem que podemos designar como "O Berbere" disse-nos que nos levava lá pelos 50 acordados. Mostrou-nos os valores afixados no vidro do táxi: Jardins Majorelle, 50 dirham. Durante a viagem, não pudemos verificar mas, se dizia que assim era, que estava escrito, tudo bem. Avisou-nos dos taxistas que praticam preços à descarada.
Falámos do Cristiano Ronaldo, do Ramadão, dos berberes e dos árabes e do facto de se falar espanhol numa qualquer região no norte de Marrocos. A dada altura, começaram os conselhos para os quais nos tínhamos preparado psicologicamente. Disseram-nos que os Jardins Majorelle cobravam mais ao fim-de-semana, posto que íamos sem bilhete. Seria mais de 20 euros por pessoa, e estaria apinhado de turistas. Foi tão convincente que nos levou até à rua que lhe dava acesso, onde se viu um mar de reformados e de jovens, bem como a polícia aquartelada a impedir a passagem a mais veículos. Ofereceu-se para nos levar a outro jardim "muito mais giro", e ainda por cima gratuito, ao qual "teríamos de chegar de túnica e camelo e podíamos tirar uma foto". Eu não sou esse tipo de turista, o que gosta de se mascarar de local. Trabalhei nessa indústria durante anos e acho que o turismo deve, acima de tudo, causar o mínimo de impacto no local visitado e, sempre que possível, contribuir positivamente para o desenvolvimento local. Perguntámos se o outro jardim ficava muito longe, ele disse que era praticamente a mesma coisa e que esperava por nós para nos trazer de volta. Isso já começou a parecer-nos demasiada generosidade. De mencionar que tinha acabado de levantar uma soma de dinheiro considerável, posto que teríamos de pagar o hotel em numerário. O belo jardim prometido chamava-se La Palmeraie, mas também nenhuma de nós tinha internet para compreender a onde nos estávamos a dirigir. Decidimos confiar. Fomos tontas? Talvez, mas nunca me senti em perigo. Aliás, olhámos umas para as outras cientes de que fomos a Marrocos para ser enganadas e levar a coisa na desportiva.
Antes de chegarmos, O Berbere aconselhou-nos a visitar o vale de Ourika no dia seguinte, e fez-nos um preço de 60,00€ pelo dia inteiro, que sabia ser bom porque tinha consultado o das agências, que era de cerca de 90,00€ para as 4. Poderíamos almoçar à beira de um curso de água e fazer um passeio da natureza, e ainda espreitar as Montanhas Atlas. Estávamos mais ou menos convencidas a ponderar, dependendo de como corresse o passeio com o nosso "guia-taxista" privado. Mostrou-nos os valores afixados no vidro do táxi: Jardins Majorelle, 50 dirham. Durante a viagem, não pudemos verificar mas, se dizia que assim era, que estava escrito, tudo bem.
Parámos naquilo que só posso descrever como um descampado com palmeiras de aspeto bastante sofrido, estilo "armadilha para turistas". Descemos do táxi e O Berbere fez um gesto para o seguirmos. Perguntámos-lhe onde era a entrada de tal "jardim", mas era aquilo o jardim. Aquelas palmeiras tristes e os camelos lânguidos a ruminar. Naquela espécie de oásis no deserto, estavam uns quantos matulões sentados em redor de qualquer coisa, e um senhor mais velho que nos mostrou a seleção de túnicas sebosas que iríamos "ter de vestir"numa corda entre duas palmeiras, para seguirmos até à pressuposta entrada do jardim em pompa e circunstância. Ficámos sempre a olhar para o além, para os muros ao fundo, a perguntar-nos onde raio ficava o tal jardim, e porque seria tão longe dali que não podíamos ir a pé, porque "tínhamos" de ir de camelo. Neste ponto, ressalvo que o francês não é sequer a minha terceira língua, é a quarta, e que posso ter compreendido alguma coisa mal. No entanto, penso que o mais provável é que o taxista tenha sido vago de propósito. A dada altura, estou a ouvir a minha professora de história a lembrar-me de que não há almoços grátis enquanto nos enfiam as túnicas pela cabeça sem nos tocar, e nos ajeitam os lenços na cabeça em estilo... berbere?
Quando demos por nós, estávamos as quatro a olhar umas para as outras naquela fatiota, e o taxista chamou-me para a lateral do carro para me dizer que depois de andarmos de camelo teríamos de dar a contribuição de 75 por pessoa pelo passeio e pela túnica. Assim que regresso para perto da minha irmã, ela nem precisou de abrir a boca: quanto?, é o que diziam os seus olhos.
Levam-nos para junto dos camelos e, ao primeiro olhar para os pobres animais, já sei que não vou ter coragem de ser conivente com esse tipo de exploração. Prometi a mim mesma que ia deixar a sensibilidade de ocidental na Europa, mas não tive coragem. Senti que aqueles camelos só precisavam de uma coisa de mim: que os deixasse em paz. Todas nos recusámos a montá-los mas, para não dizer que achamos aquilo um tanto desumano, dissémos que tínhamos muito medo dos camelos, muito medo mesmo. Passaram um bocado a tentar convencer-nos de que devíamos tocar-lhes, eram muito dóceis. Em momento algum me senti em perigo, e diria que sou hipersensível ao perigo, mas também não me pareceu muito seguro estar ali no meio de homens cujos braços me percorriam do joelho ao pescoço a negar-lhes a minha bolsinha cheia de dirhams. Recusámo-nos veementemente e o taxista acabou por dizer que a escolha era nossa. Entretanto, o senhor que não falava francês disparou números em francês, 250 por pessoa para andar de camelo. E nós paradas diante dos bichos, a recusar-nos. 200, pronto. Nada feito. No final a coisa já ia em 75 dirhams por pessoa, como o taxista começara por anunciar, mas tive de lhe dizer no meu francês mais polido que não era uma questão de dinheiro. Simplesmente não conseguíamos ultrapassar o nosso pavor a dromedários. Afinal onde era a porta do jardim? E de quanto tempo precisávamos para o visitar? Porque não havia ali mais táxis, só nos restava regressar com ele.
Com um revirar de olhos e um bufo muito universal, o senhor das túnicas e dos camelos desistiu, enquanto o taxista nos mandou dar uma volta pelo "jardim" que ficava à nossa espera durante o tempo que quiséssemos.
Assim que começamos a afastar-nos, digo à minha irmã que era para aquilo que estávamos ali, a experienciar outro mundo. Para ser enganadas e para nos rirmos disso. Ela esticou a túnica e riu-se: Como é que isto aconteceu? Como é que acabei num descampado com este traje? Tirámos algumas fotos e o quarto elemento, ainda mais aluado do que eu, perguntou então onde era o jardim. Deve ter sido aí que começámos a rir-nos às gargalhas e percebemos que o jardim era aquilo. Só aquilo. Combinámos que, ao regressar, íamos dar 50 dirham ao senhor das túnicas e estava ótimo. Nota em riste para não termos de abrir as malas entre tantos pares de olhos, e enfiei a nota na mão do senhor no instante em que nos livrámos das túnicas. Percebi que estava desapontado e começou a discutir com O Berbere, que nos disse que era 50 por cada, e não 50 total. E eu, que não tinha acordado nada, virei-me e voltei para dentro do táxi com elas. O Berbere seguiu-nos meio aborrecido, porque o passeio não tinha sido tão lucrativo como tinha imaginado que seria. Disse-lhes que eram estudantes, esclareceu. Como se não estivessem fartos de saber que as pessoas vão até ali ao engano.
Foi então que considerou que era boa altura informar-nos de que os Jardins Majorelle eram 50 dirham, mas La Palmeraie era 100, por ser mais distante. Apontou para o vidro e dessa vez lemos mesmo: estava certo. Era 100, ele bem que podia ter avisado quando sugeriu a mudança de trajeto. A minha irmã começou a remexer na roupa e percebi que pensava o mesmo do que eu. Disse-lhe, no português mais tortuoso que consegui - porque ali todos parecem falar francês, inglês, espanhol, árabe e mesmo português - que, se ele aceitasse os 100 total, iríamos no tour ao vale de Ourika no dia seguinte. Se não os aceitasse, nada feito. Certo que, neste ponto, devíamos ter simplesmente afastado essa possibilidade por completo. Mas, é como vos digo, senti que havia honra nestes caminhos sinuosos para "ludibriar" os turistas, porque o prometido é sempre devido, é só estarmos atentos ao que se promete.
Chegamos à Medina, e portanto ao nosso hotel — vivas, com o dinheiro mais ou menos intacto e profundamente aliviadas —, O Berbere teve de se dirigir à minha irmã para receber, e ela sorri bem menos do que eu, Alá a abençoe. Passou-lhe 100 e, após um compasso de espera, ele disse-lhe que 100 era por percurso. Passou-lhe os outros 100 e ele nem insistiu sobre o dia seguinte, disse apenas que estaria por ali se quiséssemos encontrá-lo.
No total, gastámos cerca de 23 euros entre as quatro para fazer uma panorâmica, ver camelos tristonhos, palmeiras delapidadas, o acesso ao Jardim Majorelle e tirar umas fotos mascaradas. Não achei totalmente mau, foi uma manhã bem passada.
Podem ler mais sobre a experiência bem-humorada da Célia em Marrocos no seu blog, onde uma versão deste texto foi originalmente publicada.
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