É fácil gostar de Tavira. O mar está logo ali, mas a cidade parece mais virada para o Gilão, o rio que a corta em duas metades. Pressente-se, mais do que se vê, que ali há mais vida para lá da praia.
Chegámos num fim de semana ensolarado de abril, em plena feira de artesanato a decorrer no centro histórico. Um grupo de folclore animava o jardim público com uma dança na qual as mulheres (incluindo algumas turistas) eram elevadas nos braços dados de uma roda de homens, para gáudio de uma audiência formada por visitantes de todos os cantos do globo. Um cenário a um mundo de distância da cidade esvaziada que encontrámos na nossa anterior visita, ainda na sombra da pandemia.
Queríamos continuar em contacto com esse bulício, por isso procurámos comer em algum sítio que não nos afastasse do centro. Abrimos o Google Maps e escolhemos um restaurante nas imediações com uma boa classificação (4.6 na escala Google, de 1 a 5) e uma esplanada de esquina que convidava a um almoço demorado com vista para a animação no jardim.
A fome já rondava e a classificação tranquilizava-nos, ao mesmo tempo que nos impelia a garantir a nossa mesa, pelo que não vimos problemas em sermos os primeiros clientes a ser sentados.
A suspeita de que tudo podia não ser o que parecia começou ao reparar na estranha referência na ementa a 5% de desconto na conta final, se o pagamento fosse realizado em dinheiro. Em Roma, sê romano, pensei, pelo que atribuí a bizarrice a uma singularidade da restauração algarvia.
A estranheza foi cedendo lugar à apreensão causada pelo número cada vez maior de turistas que víamos passarem incólumes ao apelo da agradável esplanada. Alguns olhares curiosos eram rapidamente desviados, como quem parece avisado e empenhado a evitar falsas tentações. Avisado do quê, propriamente? E como? À medida que os minutos se sucediam, adensava-se a vaga suspeita de que seríamos os únicos na cidade a não ter recebido o recado e o pressentimento de que não existe experiência mais solitária em viagem do que comer num restaurante vazio.
Enquanto esperávamos pelo nosso pedido, voltei a consultar a aplicação de mapas do Google e a espreitar, com renovada atenção, a ficha do restaurante. Bastou passar as classificações efusivas mais recentes, e que tinha lido na diagonal uma hora antes, para chegar ao primeiro “fujam!”. No nosso caso, era demasiado tarde.
Um bitoque sem arroz (e amor), a par de uma dose de lulas grelhadas que não pareciam, efetivamente, ser lulas, confirmaram o tamanho do engano. Numa tentativa desesperada de ocultar o nosso desagrado e embaraço com o facto de sermos os únicos clientes à hora de almoço numa esplanada algarvia em dia de festa, ainda nos obrigámos a partilhar uma sobremesa. A maçã assada, servida fria e sem sabor, resumiu a nossa passagem ali.
O alívio de deixar o restaurante foi suplantado pouco depois pela sensação de termos sido duplamente enganados: por comentários falsos e uma refeição que deixou o sabor amargo da intrujice na boca. Era isto, então, uma armadilha no Google Maps.
Noélia
A reserva estava feita há meses, desde o final da mais recente temporada do Masterchef, que contou com a chef Noélia Jerónimo como apresentadora e jurada. Já era uma das mais conhecidas chefs do Algarve, mas a sua participação na competição de culinária introduziu-a a um público nacional mais vasto (eu incluído).
O seu restaurante em Cabanas de Tavira é um reflexo da personalidade empática e despretensiosa que deu a conhecer ao longo de 13 semanas no horário nobre da RTP. Moderno mas sem cerimónias, podia passar despercebido no final da correnteza de esplanadas com que faz vizinhança na zona ribeirinha da pacata vila piscatória.
A experiência prévia no centro de Tavira deixara-me suficientemente escaldado e apreensivo ao ponto de evitar novas aventuras gastronómicas. A oportunidade para almoçar num dos sítios mais bem recomendados do Algarve, todavia, era demasiado rara para desperdiçar. O Noélia parecia um porto de abrigo no qual estava desejoso de reencontrar a vontade (e segurança) de comer fora.
Íamos dispostos a ser surpreendidos, por isso fizemos questão de pedir uma das entradas de marisco, que incluem gamba do Algarve à guilho e vieiras marinadas com molho de coco, entre outras. Optámos pelo robalo marinado com gaspacho de manga, fresco e saboroso.
O arroz foi um dos alimentos mais vezes destacados nos desafios da última temporada do Masterchef e o seu favoritismo ganhou subitamente sentido ao consultar a ementa principal do Noélia, onde contei pelo menos 7 formas diferentes de preparar o grão, do arroz de limão (com corvina e amêijoas) ao arroz de carabineiro (com plâncton).
Debatíamos as nossas opções quando tivemos a primeira confirmação da presença da chef no restaurante. Mesmo da nossa mesa, ali no limiar entre a esplanada e a zona interior, ouvíamos a sua distintiva voz a partir da cozinha.
Por um breve momento, pareceu que estávamos novamente a assistir ao Masterchef, onde era habitual a chef fazer-se ouvir da sala dos jurados, com elogios espontâneos aos pratos preparados pelos concorrentes. “Tragam o pão!” tornou-se a sua frase de assinatura ao longo do programa e sinónimo de êxito culinário. Dos três apresentadores, era quase sempre a mais disposta a elogiar e celebrar os sabores bem conseguidos pelos concorrentes.
Perante uma casa quase cheia, todavia, as exigências são outras. Pouco depois da hora de abertura, a azáfama e a voz de comando da chef algarvia enchiam a atmosfera do restaurante. Uma cozinha que comunica com a sala, sem paredes ou portas pelo meio, pode proporcionar uma experiência diferente aos clientes, e um desafio acrescido a quem nela trabalha, dependendo se for um dia bom ou não.
É possível que a nossa visita tenha coincidido com um dia menos bom. “O que se está a passar?”, ouvimos, a certa altura, a chef perguntar repetidamente, num tom exasperado, dentro da cozinha. O motivo tornou-se aparente pouco depois, quando a mesa de 6 pessoas ao nosso lado ficou sem uma das entradas pedidas e avançou diretamente para os pratos principais (sem qualquer sinal de desagrado, diga-se).
No nosso caso, não resistimos a partilhar uma cataplana de bacalhau com camarão, tão caseira e generosa como os melhores preparados da minha mãe. Na sequência da nossa deceção inicial na região, foi um prato especialmente reconfortante para provar, onde sentimos a familiaridade e o esmero que tanto chamaram a nossa atenção na televisão.
Não posso falar por experiência pessoal, mas cozinhar para outros é, seguramente, um dos trabalhos mais fisicamente exigentes que existem. Ver a chef Noélia à frente da sua cozinha, perante uma sala cheia, foi uma demonstração de grande exigência e humildade. No final da refeição, a minha companhia, menos tímida, fez questão de dizer-lhe isso mesmo, junto ao balcão. O elogio foi recebido com um sorriso cansado e o olhar vigilante de quem ainda não podia dar o turno por encerrado. Fazer os outros felizes, lê-se numa das paredes do Noélia, é um dos seus lemas. Saímos de lá com a confirmação.
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