A primeira vez que fui ao Douro foi através das palavras de Miguel Torga, provando assim que é possível irmos a um lugar sem pormos os pés lá de facto. As palavras, quando bem escolhidas, têm este poder.
Lembro-me de viajar pelos versos do poema São Leonardo da Galafura que me ia sendo descortinado numa análise mais cuidada durante uma aula de português.
A paixão de Torga por aquela paisagem única aguçou a curiosidade de uma então estudante do secundário a visitar paragens que, naquele tempo, pareciam mais longínquas do que hoje. Quis o destino que o Douro fizesse parte das minhas viagens pessoais e profissionais.
Quando, finalmente, pude contemplar aquele “excesso de natureza”, senti-me também eu “capitão a navegar num doce mar de mosto, à proa de um navio de penedos”.
Não sei se foi naquela primavera que o Douro me conquistou, a partir de Galafura, com as suas estradas floridas, céu azul e socalcos verdes a namorar com o rio plácido, espelho para a obra humana tão perfeitamente encaixada naquela paisagem.
Não sei foi naquele inverno, quando, a partir de Mesão Frio, vi a neblina a bailar entre os montes, enquanto os galhos nus das vinhas lembravam a constante renovação da natureza.
Ou terá sido neste verão quando num passeio de barco no Pinhão pude observar o sol a deixar o seu rasto de ouro, enquanto as quintas à volta faziam uma vénia ao seu rio encantado, fervilhando com a chegada das vindimas.
Já neste outono consegui contemplar o espetáculo dos tons acobreados e dourados a tomarem conta da paisagem, enquanto me perdia pelas serras de Baião.
Não sei quando o Douro me conquistou, mas sei que um pedacinho do meu coração vive lá entre aquelas vinhas, aqueles montes e aquelas águas. Terras de vidas duras e gente simpática. É sempre com uma promessa de regresso que me despeço.
Havemos de voltar ao Douro porque há sempre novos motivos para nos apaixonarmos por este sítio único no mundo.
São Leonardo da Galafura
À proa dum navio de penedos,
A navegar num doce mar de mosto,
Capitão no seu posto
De comando,
S. Leonardo vai sulcando
As ondas
Da eternidade,
Sem pressa de chegar ao seu destino.
Ancorado e feliz no cais humano,
É num antecipado desengano
Que ruma em direcção ao cais divino.
Lá não terá socalcos
Nem vinhedos
Na menina dos olhos deslumbrados;
Doiros desaguados
Serão charcos de luz
Envelhecida;
Rasos, todos os montes
Deixarão prolongar os horizontes
Até onde se extinga a cor da vida.
Por isso, é devagar que se aproxima
Da bem-aventurança.
É lentamente que o rabelo avança
Debaixo dos seus pés de marinheiro.
E cada hora a mais que gasta no caminho
É um sorvo a mais de cheiro
A terra e a rosmaninho!
Miguel Torga
O Doiro sublimado. O prodígio de uma paisagem que deixa de o ser à força de se desmedir. Não é um panorama que os olhos contemplam: é um excesso da natureza. Socalcos que são passadas de homens titânicos a subir as encostas, volumes, cores e modulações que nenhum escultor, pintor ou músico podem traduzir, horizontes dilatados para além dos limiares plausíveis da visão. Um universo virginal, como se tivesse acabado de nascer, e já eterno pela harmonia, pela serenidade, pelo silêncio que nem o rio se atreve a quebrar, ora a sumir-se furtivo por detrás dos montes, ora pasmado lá no fundo a reflectir o seu próprio assombro. Um poema geológico. A beleza absoluta.
Miguel Torga in Diário XII
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