Atualmente são cerca de 130 os trabalhadores que se distribuem por 50% dos seis hectares de terreno que a centenária empresa de cerâmica de Gaia, no distrito do Porto, ocupa em Valadares. Já foram 1.500 nos anos 1970. E eram mais de 350 quando em setembro de 2012 foi declarada a insolvência da empresa fundada a 25 de abril de 1921 por seis homens do Norte de Portugal, com o capital social de 140.000 escudos.

“O que muitas pessoas desconhecem é que a Valadares fechou porventura no seu melhor momento industrial e comercial. Afundou pela correlação que tinha num grupo que estava em maus lençóis”, conta, à agência Lusa, o diretor geral da ARCH (Advanced Research Ceramic Heritage), empresa que em setembro de 2014 tornou possível a reabertura da Cerâmica Valadares.

Valadares, a cerâmica de Gaia que finta falências e pandemias há 100 anos
Área de acabamentos de peças na Cerâmica de Valadares, Vila Nova de Gaia, 15 de abril de 2021. créditos: © 2021 LUSA - Agência de Notícias de Portugal, S.A.

Henrique Barros integrou a equipa de gestão que trabalhou durante dois anos no regresso da empresa e é hoje um dos administradores. Atribui o sucesso da reabertura à “credibilidade e tradição da marca”, bem como ao envolvimento do gestor de insolvência e do presidente da Câmara Municipal, mas destaca a “vontade e a entrega dos funcionários”, os mesmos que permitiram que a retoma de atividade se concretizasse quando, por unanimidade, aceitaram abdicar de metade de um crédito de 10 milhões de euros.

“Muitos deles nasceram como adultos nesta casa. Alguns trouxeram uma segunda geração. Viviam apaixonados pelo que faziam. Quando a Valadares fechou perderam mais do que o trabalho, o foco. Muitos não saíam daqui, gritavam ‘coragem’ de lá de fora, iam ao café procurar novidades, nem todos regressaram, mas todos torciam por isto”, conta.

José Dias, chefe de controlo de qualidade da Valadares há quase três décadas – número no qual inclui os dois no desemprego – é um dos rostos do regresso da cerâmica que agora se dedica em exclusivo ao sanitário de gama média e alta.

“Acreditei sempre”, diz à agência Lusa sem hesitar e descrevendo a empresa como “uma casa”.

Aos 63 anos, José não pensa na reforma, mas garante que quando o dia chegar irá “feliz”, ainda que admita verter uma lágrima como viu muitos colegas “tais foram e são as saudades disto”.

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É também para esses que a ARCH trabalha todos os dias. Henrique Barros tem expectativa de que os créditos em atraso da antiga Valadares sejam pagos na totalidade ainda este ano a todos os funcionários contando com quem regressou, quem se reformou e quem encontrou outros projetos, num universo próximo de 400 pessoas.

“Os credores trabalhadores que tinham abdicado de 50% dos seus créditos, arriscam-se a recuperar tudo. Não sei se a Valadares é caso único, mas não devem existir muitos exemplos. Os que cá ficaram dizem: ‘eu tive o privilégio, portanto tenho o dever moral de trabalhar para aqueles que não vieram’”, refere o diretor.

José Dias, que já recebeu 75% do que a antiga Valadares lhe devia, confirma esta versão: “Se hoje a Arch não estivesse a fabricar louça, dificilmente quem está lá fora receberia as suas indemnizações. Nós continuamos aqui a trabalhar por nós e por eles, pela família”, afirma.

A empresa que no passado produziu telhas e tijolos, louça de mesa decorada, azulejos e material para revestimento, é uma das duas sobreviventes de um dos maiores polos cerâmicos do país.

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Em declarações à Lusa, o presidente da Câmara de Gaia, entidade à qual, a par do gestor de insolvência, Castro Lima, a atual administração atribui crédito pelo regresso à atividade, referiu que “a Cerâmica Valadares é uma história de superação de que o Município muito se orgulha”, lembrando “a determinação e luta de antigos trabalhadores” em momentos de “enormes dificuldades”, bem como “a marca histórica no concelho e no país”.

Essa “luta” – sobretudo a associada aos trabalhadores que chegados a hotéis ou restaurantes que tenham produto Valadares, procuram e encontram não raras vezes os seus números marcados na louça – está presente em vários episódios da empresa.

Se quando se deu o 25 de Abril de 1974, alguns trabalhadores, à revelia da administração de então, venderam louças que permitiram pagar salários, já no período em que a empresa esteve fechada entre 2012 e 2014, para satisfazer “clientes que estavam de boca aberta com o que tinha acontecido, manteve-se uma equipa comercial escondida e antigos colaboradores que estavam no desemprego iam fazendo telefonemas e diziam aos clientes para irem buscar isto ou aquilo graças ao ‘stock’ existente”, conta Henrique Barros.

Mais recentemente, quando a ARCH fechou fisicamente durante três meses devido à pandemia da covid-19, recorrendo a processos de ‘layoff’ e ao teletrabalho, alguns trabalhadores formaram equipas para fazer manutenção e pintar edifícios, garantindo que ninguém se cruzava.

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“Mandar as pessoas para casa não foi fácil. Tiveram receio de rever o filme anterior, o fecho. Não quisemos correr riscos. Nunca deixamos de vender. A produção arrancou em julho e tivemos o melhor segundo semestre desde que a Valadares reabriu”, refere o diretor geral.

Ainda assim, o novo coronavírus que mudou o mundo e já provocou a morte de 16.956 pessoas em Portugal representa, nas contas da ARCH, uma queda de 10% nas vendas relativamente a 2019.

A empresa fechou 2020 com uma faturação na ordem dos 5,8 milhões de euros. Este ano tem expectativa de ficar acima dos sete.

“O mercado reagiu muito bem a Portugal. Não fossem algumas asneiras do Governo ou alguma falta de juízo dos portugueses e teríamos tido um fim de ano muito bom e um início de ano excecional. Minimizamos os estragos”, sintetiza Henrique Barros.

Com o mercado nacional a ocupar cerca de 60% do volume de negócios, a ARCH Valadares exporta para mais de 40 países.

Com a Europa representar cerca de metade da fatia de exportação e o Médio Oriente – em países como Jordânia, Líbano e Omã – a representar 25%, somam-se negócios em outras latitudes, sendo que “a Ásia representa neste momento o maior investimento em termos de expansão”.

Outro dos projetos de futuro prende-se com a rentabilização das instalações – perdidas pela antiga empresa, mas resgatadas pela ARCH que em 2019 as comprou à massa insolvente – que não estão ocupadas.

Sem avançar com datas, Henrique Barros revelou a existência de um projeto que “implica a partilhar de espaço com outras empresas, num modelo algo próximo de um parque industrial”.

Quanto ao prometido Museu da Valadares, o ano de centenário deverá impulsionar a ideia. O edifício, um localizado junto à portaria, já está escolhido e tem porta para fora em jeito de convite à comunidade.

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