Quando a Bica tem que mostrar quem é,
Tem sempre alegria até ao fim
À rua não vem quem lhe bata o pé,
Onde ela chegar é sempre assim.
- Frederico de Brito, “A Marcha da Bica”
Duarte Belo (que dá nome à rua principal) tinha umas terras com bicas (fontes). Uma dessas bicas, conhecida pelas suas elevadas propriedades sulfatadas, foi mudada para onde se encontra ainda hoje, em 1615. Recomendava-se na época a que lá lavassem os olhos quem sofresse desses males e, inicialmente, quando a rua recebeu essa bica, chamava-se “Rua Direita da Boa Vista da Bica dos Olhos”, que hoje é apenas Rua da Boavista. Essa bica ainda existe (apesar de já não ter água, logo não pensem em ir lá lavar a seita dos maus-olhos), e pode ser vista junto ao nº32 da Rua da Boavista, no sopé da Bica. Havia ainda a Bica Grande, até há não muito tempo atrás, um grande tanque onde as mulheres lavavam a roupa e os garotos se banhavam, e que deu nome à Calçada e Escadinhas da Bica Grande. E uma terceira, na Calçada da Bica Pequena.
Hoje, e apesar de estarmos em pleno Inverno, os varandins da Bica estão ainda decorados com fitas coloridas, usadas para as Marchas, e as laranjeiras que batizam a Travessa com o mesmo nome, estão carregadas! A Sul, o rio, sempre presente, relembra as gerações de outrora que aqui habitavam, com profissões ligadas ao mar, tais como pescadores, varinas, mareantes e aguadeiros. Às inúmeras portas de tascas e mercearias que aqui operam há gerações, rompem novos e modernos negócios: cabeleireiros, cafés da moda, alojamentos locais e lojas de conveniência.
Do exíguo espaço que lhe conferem as fronteiras e ramificada por uma mão cheia de Travessas e de outros tantos Largos e Calçadas, a pitoresca Bica divide-se por três Bicas pequenas, que juntas fazem uma Bica só: a Bica de Cima, a Bica de Baixo e a Bica do Lado de Lá do Elevador. Depois há a Calçada da Bica Grande, a Calçada da Bica Pequena, a Rua da Bica do Duarte Belo e até o Chafariz da Bica da Boa Vista, que mesmo estando agora em São Paulo, veio da Bica que falamos. E o Elevador da Bica. Afinal, a Bica é grande!
Havendo tanta curiosidade sobre a história e os recantos da Bica, recomendo o percurso por baixo, com começo na Rua de São Paulo, nº234. A imponente entrada para o edifício amarelo de 5 pisos tem com um portão verde coroado com um grande letreiro em semicírculo, onde se lê “Ascensor da Bica”. É deste edifício setecentista, ladeado discretamente pelas duas Calçadas - à esquerda, a da Bica Pequena, e à direita, a da Bica Grande - que parte o ascensor que percorre o bairro, rumo ao Calvário, e que domina hoje a paisagem da Bica. Este ascensor, promovido a monumento em 2002, já foi estrela de intervenções artísticas: Vhils decidiu espelhá-lo em 2010, e em 2013 ganhou um padrão semelhante à calçada Portuguesa; já foi também estrela de cinema, tendo aparecido (entre outros) no Lisbon Story, de Wim Wenders.
À saída da paragem na Rua de São Paulo, já no Largo de Santo Antoninho, abre para a esquerda a Rua dos Cordoeiros, artéria que une a Bica a Santa Catarina. Aqui está o mítico Grupo Desportivo Zip-Zip, considerado pelos Bicaenses como a “sede” da auto-denominada “Bica do Lado de Lá do Elevador”. Apesar de estar quase sempre encerrado, faz um arraial por altura das Marchas ou ocasionalmente abre para uma noite de fados.
Rival à “Bica do Lado de Lá do Elevador” é a “Bica de Baixo”, do lado oposto ao Largo de Santo Antoninho, cuja “sede oficial” é o também mítico Marítimo Lisboa Clube, situado nas Escadinhas da Bica Grande, conhecido apenas como Marítimo.
Já a “Bica de Cima” é representada pelo Grupo Excursionista Vai-Tu, que apesar de estar hoje em “terreno neutro”, estrategicamente posicionado no nº6 da Rua da Bica de Duarte Belo (“a rua do elevador"). O Vai-Tu é hoje o coletivo mais prolífero, famoso pelas suas noites de fado, mas onde também é possível ver jogos de futebol e comer umas boas bifanas. É aqui que se respira o mais genuíno ar Bicaense, com habitantes cujos pais já tinham nascido na Bica, cujas avós lavaram as suas roupas no tanque da Bica Grande e cujos tetravós sonharam com o dia que lhes fosse facilitada a íngreme subida da Rua da Bica de Duarte Belo, sem ter que ser a pé nem de bicicleta às costas.
Fazendo jus à topografia do bairro, o ascensor também teve a sua cota parte catastrófica: em 1916, devido a um problema nos travões, desceu desenfreadamente a rua toda, espatifando-se contra o edifício da Rua de São Paulo. Foi tão caótico que levou 7 anos para reparar os danos – prova que as obras públicas parece que não evoluíram tanto assim. Em tempos mais próximos, nos anos 90, um novo problema com os travões, fez com que a história se repetisse, mas já sem o drama ou a espetacularidade do primeiro incidente. Ainda assim, nunca fez vítimas. Hoje continua no sobe-e-desde, levando a bordo os turistas sorridentes, munidos de gopros e selfie-sticks. Tornou-se numa espécie veículo exibicionista, que brilha nas fotos com hashtags dos muitos viajantes-influencers que se deixam apaixonar por este velhinho galã das nossas colinas, não tivesse esta rua sido eleita como a “mais bonita do Mundo”, pelo MSN em 2017.
Que rica que vai a Bica,
Vai com tal graça e tem um certo não sei quê
Que linda que ela é ainda,
Por onde passa até alegra quem a vê.
- Frederico de Brito, “A Marcha da Bica”
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