Um viajante recém-chegado a uma cidade comete erros. É inevitável. E eu tive uma falha inadmissível em San Sebastián quando comentei em voz alta a um amigo de Barcelona que o croquete que me serviram numa taberna escolhida à sorte estava demasiado gorduroso. Acrescentei que se aquela era uma amostra dos afamados pintxos (tapas, ou petiscos) de Donostia, então a cozinha basca estava sobrevalorizada.
Não sabia que os bascos, tal como os peruanos ou os italianos, não admitem que se critique a sua gastronomia. É mais ou menos como ofender-lhes a mãe. Hoje sei-o, graças a Arnaitz, um guitarrista que bebia uma cerveja com dois amigos na mesa ao lado e que se exaltou com a minha tirada. “Como podes generalizar que a nossa comida não presta se estás num sítio feito para beber, não para comer?”, atirou-me.
Felizmente, muitos dos erros dos turistas são retificados pela boa vontade e pelo conhecimento dos locais. Ao invés de me atirar com uma garrafa à cabeça, como temi que acontecesse, convidou-me, sem margem para recusas, a acompanhá-lo à Rua 31 de Agosto – segundo ele, ali iria encontrar “as melhores tascas de petiscos do universo”. Creio que o conquistei quando disse que era português: “Vocês foram os únicos que conseguiram a independência de Espanha”, gracejou. O meu amigo catalão encolheu os ombros.
Rapidamente reconheci que me tinha precipitado. No La Cepa deliciei-me com o presunto, com os cogumelos e com o bacalhau fresco. No Cuchara de San Telmo destacaram-se as bochechas de vitela, as morcelas e os mexilhões, intercalados por copos de sidra. Nesse dia, não consegui ver mais nada da cidade, mas despedi-me de Arnaitz dizendo-lhe que com tanta comida boa tinha sido um desperdício provar croquetes.
San Sebastián é uma cidade maravilhosa. Os três quilómetros da marginal sobre a Playa de la Concha, a mais impressionante praia urbana que já vi na Europa, dão para infinitos passeios, começando no Pente do Vento, o conjunto de esculturas de aço de Eduardo Chillida que convivem com o espumar das ondas. No horizonte, a ilha de Santa Clara, que Arnaitz me dissera por vezes acessível a pé em época de marés vivas – mas que num dia normal parece estar enraizada em alto mar.
Através do funicular de madeira, de 1912, chega-se ao Monte Igueldo, abençoado com a melhor vista sobre a cidade, a praia e a ilha de Santa Clara. O centro histórico (casco viejo), a que os habitantes de Donostia chamam simplesmente de “velho”, também é imperdível, com destaque para a Plaza de la Constituición e para a Basílica de Santa Maria del Coro e, mais afastada, a Tabakalera, uma antiga fábrica de tabaco transformada em centro de arte contemporânea.
Para quem gosta de surf, Mundaka é ponto de passagem obrigatório. Eu não pratico, mas por ouvir milhentas vezes os meus amigos proferirem este nome, saí de Bilbau com a intenção de ver uma das melhores esquerdas do mundo. Antes de Peniche, a Ericeira ou a Nazaré se transformarem em santuários das pranchas, Mundaka era incontestadamente o lugar na Europa onde todos queriam surfar. Não perdeu a reputação; na pequena praia de Laidatxu, dezenas de autocaravanas com matrículas dos mais variados países servem de base para rapazes e raparigas vestirem os fatos e porem as pranchas debaixo dos braços.
A zona está pejada de lojas e de escolas de surf, mantendo, ainda assim, o encantador entorno da Reserva da Biosfera de Urdaibai e o antigo centro piscatória da vila, onde há mais de 900 anos terão desembarcado vikings no que hoje é o porto. Esta exposição marítima ao norte da Europa estará, pensa-se, na base da distinta identidade dos bascos, que para além de várias tradições pagãs conservam um idioma, o euskera, que ninguém percebe nem sabe ao certo de onde vem – apesar de muitos gostarem de acreditar que o herdaram dos celtas ou dos vikings.
A estas esquinas do Mar Cantábrico não faltam enseadas perfeitas, arribas dramáticas, aldeias pitorescas e praias invejáveis. Uma delas, a de Lekeitio, entre Bilbau e San Sebastian, tem um areal que se transforma continuamente diante da Ilha de Garraitz, descobrindo por vezes um trilho subaquático de rocha que permite caminhar até ela. A pequena localidade era um antigo porto baleeiro e conta-se por ali que marinheiros bascos chegaram à América e casaram com nativas muito antes do nascimento de Colombo. Outra, a de Zumaia, com os seus 270 metros de areia dourada, tem umas falésias tão cinematográficas que foi o cenário escolhido para a gravação de uma sequência da série “Guerra dos Tronos”.
A melhor maneira de viajar na região é pelas estradas nacionais que, embora mais lentas, serpenteiam as montanhas e atravessam aldeias remotas. As paisagens são imprevisíveis; à saída de uma curva, podemos vislumbrar um vale de verde pujante coberto de pinheiros, enquanto mais à frente damos de caras com os baluartes metálicos de uma fábrica gigantesca.
Os bascos são tudo isto: um povo ligado à natureza e à indústria, modernos mas apegados às suas tradições, menos religiosos que os espanhóis do sul mas fiéis às mezinhas dos avós, às lendas de bruxaria e de deuses antigos. A tudo isto, junta-se uma fascinante história política e cultural, manifestada nas centenas de murais que clamam pela independência ou pela libertação de presos da ETA.
Símbolo máximo do patriotismo basco, Guernica, a cidade-mártir bombardeada por Franco e pelos seus aliados nazis, que mais tarde inspiraria uma das obras-primas de Pablo Picasso. Diante da antiga sede do governo, um carvalho sobreviveu à pólvora e tornou-se símbolo de um povo inteiro; as suas bolotas são enviadas para a diáspora basca espalhada pelo mundo para que também os emigrantes possam plantar Guernica onde quer que estejam.
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Texto: Tiago Carrasco
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