Angra do Heroísmo, na ilha da Terceira, acolheu, pelo segundo ano consecutivo, a maior fatia da GLEX Summit, uma cimeira internacional que procura celebrar as descobertas mais excitantes nos vários domínios da Ciência e tecnologia. O evento de três dias foi organizado pelo nova-iorquino The Explorers Club e pela portuguesa Expanding e convidou mais de duas dezenas de oradores, sobretudo cientistas com alguma visibilidade mediática, a partilharem o que os entusiasma na exploração do espaço, dos oceanos e da terra.
Ao nível do espaço, não faltaram especialistas (alguns deles astronautas veteranos) ou temas para entrar em órbita, do regresso à Lua (no qual a NASA continua empenhada) às primeiras estações espaciais privadas a surgirem no horizonte. O oceano também figurou do programa, com a presença sonante de Fabien Cousteau, que veio à Terceira apresentar o seu ambicioso projeto para uma rede internacional de estações subaquáticas, e um momento de homenagem a Hamish Harding (membro do The Explorers Club) e restantes vítimas do desastre no ano passado com o submersível Titan. Foi nas profundezas da terra, todavia, que as palestras mais marcantes se demoraram e provaram como há muito por descobrir e fazer aqui mesmo, no nosso planeta. O SAPO Viagens esteve presente na conferência, a convite da organização, e destacamos três momentos que mostram como a Lua pode esperar.
O Euromilhões da Paleoantropologia: descobrir uma espécie antepassada da humanidade
Lee Berger é um paleoantropólogo sul-africano com ares de Indiana Jones que se revelou o orador mais seguro do fascínio que a sua palestra podia exercer num público apaixonado pelo novidades científicas. Nas duas apresentações que deu na conferência, soube fixar a atenção dos presentes com a história empolgante de como liderou a descoberta, em 2013, nas profundezas de um sistema de grutas na África do Sul, dos fósseis de um antepassado da espécie humana até aí totalmente desconhecido, que recebeu o nome de Homo naledi.
Tudo começou com a ossada de um queixo, encontrada numa cavidade situada a mais de 200 metros de profundidade e 36 metros abaixo da superfície que só é possível alcançar através de apertadas fendas indutoras de claustrofobia. "Tinha de enviar seres humanos a um espaço onde apenas alguns conseguiriam caber e tinham as capacidades para escavar estes fósseis, potencialmente algumas das mais importantes partes de um esqueleto alguma vez descobertas", enfatizou Berger, cuja equipa de investigadores continua a trabalhar no local até hoje.
Depois da pandemia, cansado de ver por um ecrã o interior da gruta mais importante da sua carreira, decidiu emagreceu 25 quilos para conseguir transpor as estreitas aberturas nas paredes que conduziam à câmara onde foram encontradas as ossadas fossilizadas de vários adultos e crianças Homo naledi. Seria apenas o 47º humano a entrar naquele espaço, pelo que a satisfação foi dupla quando reparou num conjunto de inscrições nas paredes da gruta que tinham passado, até aí, completamente despercebidas aos olhos dos restantes 46 membros da equipa.
O achado deu força à sua tese (ainda envolta em alguma controvérsia científica, diga-se) de que este hominídeo, com um crânio pouco maior que o de um chimpanzé, praticava ritos funerários, um comportamento cultural apenas associado à nossa própria espécie, o Homo sapiens.
Para Berger, isso confirma que, a par de várias espécies animais, foi possível a outros hominídeos desenvolver culturas tão complexas quanto as nossas. O ceticismo com que a comunidade científica recebeu as suas conclusões deve-se, na sua opinião, a uma tendência para ver a espécie humana como absolutamente excecional na sua evolução. "As nossas descobertas mostram que este registo está errado. Se perdemos coisas destas, num domínio da Ciência onde temos mais cientistas do que artefatos, imaginem no que mais podemos ter errado", declarou, para de seguida avançar com a sua conceção pessoal do que faz um explorador.
"Não é só ir a sítios, ver coisas, ser o primeiro", defendeu. "Ser o primeiro não interessa. O que interessa é ser o primeiro a entender, a compreender, a verdadeiramente estar consciente do que vemos. Isso devia ser a definição de exploração".
Isolada durante 500 dias numa gruta
Para falar de tempo passado em grutas, é difícil superar Beatriz Flamini, a montanhista espanhola que foi motivo de curiosidade mundial em abril de 2023 por ter passado 500 dias isolada no interior de uma gruta no sul de Espanha, tudo em nome da Ciência.
A experiência psicológica para testar os efeitos do isolamento prolongado implicou a ausência total de contacto humano, ao ponto da ultra-atleta, hoje com 51 anos de idade, não ter levado sequer um espelho consigo. Também não teve acesso a um relógio, telemóvel ou computador que lhe permitisse receber qualquer notícia ou referência temporal do exterior. Cá fora só teve o apoio de uma equipa técnica que lhe baixava regularmente abastecimentos sem necessidade de interação.
Na sua palestra em Angra do Heroísmo, Flamini contou como, em 2014, decidiu mudar radicalmente de vida e abraçar um novo quotidiano mais solitário nas montanhas. "Não era feliz", resumiu, para explicar o motivo que a levou a trocar um apartamento e emprego estável na cidade por uma furgoneta sempre na estrada.
Alguns anos depois, começou a planear atravessar a Mongólia a pé em apenas quatro meses. A pandemia obrigou a adiar o projeto, mas nem por isso quis deixar de colocar à prova a sua resistência mental e emocional, em jeito de preparação para a sua aventura na Ásia Central. Foi assim que surgiu a ideia de se fechar numa caverna, situada 70 metros abaixo do solo, durante um ano e meio, e a convidar cientistas a acompanharem e estudarem os efeitos físicos e psicológicos de tal confinamento.
"Ao pesquisar na internet, se alguém já tinha feito algo similar, descobri que um senhor esteve 464 dias [isolado do mundo] e, então, pensei: se ele pode, então eu também posso", contou a montanhista em entrevista ao SAPO Viagens. "Os 500 dias foram para arredondar e não para conseguir um recorde", garante, acrescentando que recusou constar do livro de recordes do Guinness.
Sobre o tempo passado na gruta, Flamini considera que lhe permitiu alcançar "um grande nível de força mental e emocional", ainda que acompanhado de pequenas mazelas físicas (relacionadas essencialmente com a postura). Passou muito tempo a escrever, tricotar e ler os livros que lhe baixavam juntamente com a comida (não podiam ficar na caverna, por causa da elevada humidade). Questionada sobre as suas leituras preferidas, aponta dois livros que, à sua maneira, tocam nos temas do isolamento e da autossuficiência: "Endurance", de Alfred Lansing, e "O Principezinho", de Saint-Exupéry.
Flamini diz estar agora focada no seu projeto de percorrer a Mongólia a solo, uma façanha que apenas poderá tentar alcançar durante o verão boreal. "Tem que ser nestes quatro meses, porque é uma região muito extrema em picos térmicos, com muito vento e frio [no inverno]", explica. "A única coisa que falta neste momento é o dinheiro, mas se não conseguir, estou disposta a voltar a pedir um empréstimo ao banco, tal como fiz com a gruta", assegura. A julgar pelo que já realizou, é difícil imaginar algo a impedi-la de levar a sua avante.
Uma gruta na Terceira que pôs a Ciência portuguesa no mapa
Não era preciso ir longe para ficar a conhecer a terceira gruta que pareceu incontornável nesta edição do GLEX Summit. A Gruta do Natal fica a poucos quilómetros de Angra do Heroísmo e foi no seu interior que teve lugar, em novembro do ano passado, a expedição científica CAMões (acrónimo para Caving Analog Mission for Ocean, Earth, and Space exploration), na qual um grupo de sete investigadores passou uma semana debaixo de terra a simular as condições de vida e trabalho de uma missão análoga na Lua.
Foi a primeira missão do género a ser realizada em Portugal e resultou da conjugação de esforços de uma associação local de espeleologia (Os Montanheiros) e um instituto nacional de investigação (o INESC TEC). Um ano depois, o entusiasmo com os resultados obtidos era indisfarçável por parte de Ana Pires, a cientista portuguesa que liderou o projeto e destaca a forma como todas as peças se encaixaram para permitir a colaboração de várias pessoas de diferentes nacionalidades, culturas e áreas científicas, sob a liderança de duas mulheres.
No seu entender, o projeto tem o mérito de provar que a região dos Açores, e a Ilha Terceira em particular, "tem imenso potencial em termos de geodiversidade e biodiversidade" para receber futuras atividades de investigação e desenvolvimento espacial. É por ali, também, que poderão passar futuros astronautas portugueses. "Portugal deverá apostar em missões e projetos relacionados com a exploração tripulada, de forma a prepararmos as nossas e os nossos jovens para futuros recrutamentos da ESA", explicou Ana Pires ao SAPO Viagens.
As conclusões da missão, baseadas nas experiências científicas e tecnológicas realizadas no interior da gruta vão ser publicadas em breve na internet, em modalidade de acesso livre, mas não se esgotam na Ciência. As seis noites e sete dias debaixo de terra já inspiraram um livro de poemas, da autoria de Yvette Gonzalez, uma das investigadoras que fez parte do grupo.
"A gruta disse-nos muitas coisas. CAMões foi ciência, tecnologia e experiência", resumiu Ana Pires ao público reunido no Centro de Congressos de Angra do Heroísmo.
O entusiasmo contagiante da cientista portuguesa com tudo o que envolveu este projeto suscita a pergunta inevitável, que serviu de lema à GLEX Summit, sobre o que se segue: "Sou muito apaixonada pelo que faço", disse ao SAPO Viagens. "Adoro fazer ciência e desenvolver geotecnologias, por isso, todos os dias são uma aventura para mim", garante.
O SAPO Viagens viajou até ao Porto e Angra do Heroísmo a convite do GLEX Summit.
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